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VISTO, LIDO E OUVIDO, criada desde 1960 por Ari Cunha (In memoriam)
Hoje, com Circe Cunha e Mamfil – Manoel de Andrade
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Há uma dimensão do sofrimento humano que resiste à linguagem e se manifesta como um ruído permanente, uma presença que não se deixa nomear nem compreender inteiramente. Essa incapacidade de descrever o que nos atravessa, somada ao desconforto de habitar uma interioridade sem forma, faz com que seja tentador terceirizar a outros a tarefa de dizer quem somos. Ao invés de suportar o silêncio que acompanha a pergunta pela própria essência, buscamos o conforto nas definições de figuras que prometem traduzir o indizível: cientistas, médicos, analistas, gurus, especialistas de toda espécie. Neles projetamos a esperança de que o enigma da existência possa ser resolvido com o rigor de uma fórmula ou a precisão de um diagnóstico.
Essa transferência de autoridade nasce de uma fadiga metafísica: o cansaço de sustentar o peso da dúvida. Estamos aqui falando da angústia que todos enfrentamos diante da esfinge de Tebas que cada um carrega dentro de si. “Decifra-me ou devoro-te.” Por desespero, recorremos às autoridades. Assim, a ciência, que deveria ser instrumento de investigação, converte-se em sistema de fé, e o saber técnico adquire a função simbólica que antes pertencia ao mito.
O fenômeno não nasce apenas do avanço da psiquiatria, mas de um deslocamento cultural mais profundo, em que o sofrimento deixou de ser vivido e passou a ser um quebra-cabeça a ser resolvido. O Cristianismo, com todos os seus equívocos históricos, continha uma dimensão simbólica e ética que remetia à experiência do mistério, à consciência da limitação humana, à ideia de transcendência e de sentido. A ciência, quando reduzida a instrumento de poder discursivo, não substitui essa dimensão, mas a silencia com uma boa dose de venvanse, sertralina ou fluoxetina. O resultado é uma cultura que se diz racional, mas que age movida por um fervor missionário. A confiança cega em relatórios, modelos e especialistas não é menos dogmática que a fé dos antigos, apenas mais disfarçada pela linguagem técnica.
As redes sociais amplificaram esse processo. Cada laudo, real ou presumido, converte-se em elemento de identidade, em bandeira estética e em ponto de encontro para comunidades que trocam sintomas como quem compartilha afinidades. O transtorno passa a operar como senha cultural e ao mesmo tempo como fronteira. O sofrimento é exibido, estilizado, reconhecido e celebrado. O vocabulário clínico, antes restrito a consultórios, tornou-se material de expressão pública, misturando-se a hashtags, playlists e discursos terapêuticos de autoajuda.
A consequência é a substituição da interioridade pela descrição. O indivíduo aprende a falar de si por meio de diagnósticos que o precedem, que já estavam prontos antes de ele se reconhecer neles. É como se o sofrimento precisasse de uma certidão para existir. Essa apropriação da linguagem médica tem algo de religioso: transfere à figura do psiquiatra à autoridade do intérprete, aquele que lê o destino nos exames, nas escalas e nos manuais. O divã torna-se um altar laico, e o consultório, um templo silencioso em que cada palavra tem peso de revelação.
O resultado é uma cultura que valoriza a consciência do próprio transtorno mais do que a experiência da própria vida. Talvez o que nos falte não seja um novo diagnóstico, mas a coragem de permanecer no vazio que antecede qualquer definição. A angústia, quando suportada sem anestesia, é ainda a expressão mais honesta do humano. O sofrimento, antes de ser uma patologia, é uma forma de consciência, uma lembrança incômoda de que existir é sempre um desajuste entre o que somos e o que desejamos ser.
Nelson Rodrigues dizia que “toda unanimidade é burra”, e talvez possamos estender a provocação: toda certeza sobre a alma é prematura. Ao tentar domesticar a dor com a linguagem técnica, perdemos o contato com a vastidão que ela aponta. É possível que a tarefa mais urgente do nosso tempo não seja curar o sofrimento, mas restituir-lhe o estatuto de experiência legítima, inseparável da condição humana. Pois sem ele, não resta nada que nos obrigue a olhar de frente o abismo e reconhecer nele, paradoxalmente, o que ainda nos mantém vivos.
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