Desmatamento: Brasil pode perder credibilidade no monitoramento

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O governo brasileiro colocou em dúvida a credibilidade dos dados de desmatamento na Amazônia produzidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Para a comunidade científica global, o país é referência na produção e qualidade do monitoramento florestal. Contudo, o posicionamento do presidente Jair Bolsonaro, que criticou, reiteradas vezes, o trabalho do Inpe, coloca em risco tal status.

De acordo com números divulgados pelo Inpe, o desmatamento na Amazônia Legal brasileira atingiu 920,4 km² em junho, um aumento de 88% em comparação com o mesmo mês no ano passado. Há duas semanas, Bolsonaro colocou em dúvida a veracidade dos dados, chamado-os de “mentirosos”, e solicitou uma “averiguação”.

Na quarta-feira (31/7), durante assinatura do contrato de concessão da Ferrovia Norte-Sul com a empresa Rumo Logística, no Porto Seco do Centro-Oeste, em Anápolis (GO), Bolsonaro disse que “ninguém quer fugir da verdade, mas dados imprecisos atrapalham os negócios fora do Brasil”.

“Foi uma variação muito abrupta. Se você gasta R$ 200 de energia elétrica e, de repente, a conta passa para R$ 400, alguma coisa aconteceu, tem um gato. Existem dados lá que são alertas de desmatamento, que não são desmatamento”, explicou, em coletiva de imprensa após o evento em Anápolis. Segundo o presidente, na Amazônia, há uma área de 80% de preservação, mas 20% podem ser usados. “Por algum tempo, o fazendeiro não fez nada lá e agora decidiu desmatar. É alerta”, justificou.

Em coletiva marcada para às 14h30 desta quinta-feira (1º/8), o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, no Palácio do Planalto, deve apresentar uma nova leitura dos dados do Inpe, o que preocupa ambientalistas e cientistas. Isso porque a independência e excelência técnica do órgão, que monitora florestas desde 1988, com reconhecimento internacional, são patrimônio da sociedade brasileira, resguardadas de interferências políticas ao longo de diferentes governos.

ENTREVISTA

Coordenadora regional da TFA, Fabíola Zerbini, alerta para dimensão do critério ambiental

Para a coordenadora regional da Tropical Forest Alliance 2020 (TFA), Fabíola Zerbini, um possível deslocamento para um mecanismo global de monitoramento traria prejuízos ao desenvolvimento de estratégias mais efetivas contra o desmatamento ilegal. Leia a seguir entrevista da especialista ao Blog 4 Elementos:

O presidente Bolsonaro disse que os dados do Inpe “atrapalham os negócios fora do Brasil”. Por quê?

O critério ambiental virou um pilar, um eixo de decisão, e, nos últimos 10 anos, isso está crescendo tanto na área comercial, na produção de alimentos e commodities, até como decisão para investimento. Porém, a sociedade brasileira e governo não têm a dimensão do quanto este dado é relevante para as relações comerciais. Uma vez que caiu a ficha, o caminho de questionar os dados é muito equivocado.

A credibilidade do Inpe está ameaçada?

O Brasil é o país com maior segurança jurídica e científica no mundo em países de base florestal na questão do monitoramento do desmatamento. O Inpe é referência global. O fato de o presidente questionar os dados não atrapalha o reconhecimento internacional, porque os argumentos não têm fundamentos técnicos. Agora, se enfraquecer o sistema de monitoramento, se o Inpe não receber orçamento e não ter os dados publicados com a transparência que hoje têm, aí sim, será um problema para o Brasil continuar com credibilidade científica e técnica no campo do desmatamento.

Qual a qualidade dos dados de monitoramento do Brasil?

Fizemos um estudo global para identificar quais as jurisdições têm mais desmatamento para produção de commodities. Ficou bom para países de base florestal. Mas quando a gente trouxe para o Brasil, que é o único país com alta qualidade de dados, o estudo ficou excelente, melhorou sobremaneira.

Há risco de o país perder essa excelência?

O que pode ocorrer é que o Brasil passará a ser lido por sistemas que não têm a mesma acuidade, com sistemas de satélites não tão bons. O risco é perder a credibilidade ao ser lido por informações de outros sistemas globais, com menos autonomia.

O presidente disse que há diferença entre alerta e desmatamento. Existe essa diferença?

Desmatamento é sempre desmatamento. Não tem como mudar. Porém, o código florestal permite em propriedade privada, na Amazônia, desmatar legalmente 20% para produzir. No Cerrado, são 50%. Ainda é desmatamento, mas é permitido por lei. O alerta pode ser associado por efeito climático, como fogo, atitude ilegal e pode ser legal. Tudo isso é muito fácil de identificar.

Qual o índice de desmatamento ilegal?

Até pouco tempo atrás, 90% do desmatamento identificado pelo Inpe eram ilegais. Com uma mudança de metodologia, caiu para 85%. Nosso problema não é o produtor desmatando a parte que pode para produzir, mas o desmatamento ilegal, que é a esmagadora maioria. O produtor rural não quer competir com o ilegal, que não paga imposto, nem gera emprego. O agronegócio se une contra essa ilegalidade. Não interessa a ninguém.

Como combater isso?

Existe uma possibilidade de compensar produtores por não desmatar. Isso é um ponto importante e precisamos trazer os produtores para essas discussões. Eles precisam estar nas discussões internacionais com voz ativa, para conquistar o direito de construir mecanismos sem entrar numa perspectiva de que está sendo lesado. Hoje, o que se discute no cerrado e vai revolucionar a forma como se compra e se produz, é um pagamento ao produtor que não desmatar os 50% permitidos. O projeto está numa fase de captação de recursos. Mas será um enorme ganho para a floresta. Não é uma questão só ambiental, é de desenvolvimento econômico. Mas precisamos continuar informando a sociedade, porque narrativa que está se construindo é que é preciso desmatar para produzir.

O Brasil lidera o ranking global de desmatamento?

O Brasil foi um grande exemplo de reversão de desmatamento de 2004 até 2013. Foi case mundial de um país que conseguiu, por uma série de mecanismos públicos e privados, reduzir o desmatamento. De 2013 para cá, no entanto, voltou a crescer. Como foi um crescimento muito significativa, o país voltou a ocupar o topo da lista.

Voltamos aos níveis pré-2004? Os dados são confiáveis?

O monitoramento global é feito há anos e o Brasil ganhou credibilidade. A gente não está igual a 2004, crescemos em capital político e tecnológico para agricultura se expandir sem desmatar. Não se pode mudar dados, o que pode variar são interpretação de dados. Não existem novos dados existem novas formas de apresentação. A questão fundamental não está na produção de dados do desmatamento ou questionar sua confiabilidade, mas sim na necessidade de órgãos do governo de manter um sistema de comando e controle efetivo. Não tem mágica. Não vão existir novos dados.

Qual o papel da TFA?

O papel da TFA é de conversa. Nosso objetivo é contornar a percepção de que floresta é um problema. Acredito que a construção do mecanismo de compensação financeira para produção de soja livre de desmatamento no cerrado vai demandar muita conversa para fazer o produtor entender que terá vantagem em não desmatar.

Quem está envolvido na construção desse mecanismo além da TFA?

A captação de recursos acontece no contexto internacional. Existe uma meta estabelecida para que o acordo seja assinado. Mas não parte apenas dos produtores, os compradores também assinaram o manifesto. Há agentes do mercado, redes supermercadistas, como o Carrefour, há traders, como Cargill e Bunge, e compradores da indústria de alimento, como a Unilever, além de instituições financeiras, como bancos e fundos de pensão. São mais de 70 assinaturas. Claro que existe a perspectiva dos doadores clássicos, países como Noruega, Alemanha, Holanda, Reino Unido. Mas o que se quer mostrar é que a cadeia inteira tem que assumir esse modelo. O produtor não tem que perder sozinho. O comprador precisa se responsabilizar pela soja que não compra. A cadeia produtiva tem que arcar com o custo. Quando isso ocorrer, vai revolucionar a relação entre países florestais e países compradores. E o produtor brasileiro tem muito a ganhar com isso.

Isso não afeta o desenvolvimento econômico?

Para essa resposta dou o exemplo do Pará. Na década de 1960, o estado era o sexto, sétimo em PIB (Produto Interno Bruto) do país. Mas, na década de 1970, passou a ter uma economia predatória. E hoje é 24º no ranking do PIB brasileiro. Isso mostra que não é modelo de crescimento e desenvolvimento. Temos que olhar a floresta como ativo, porque está comprovado que desmatamento não gera riqueza nem desenvolvimento. Um lado do Pará foi desmatado e, de alguma forma, comprovou como não se deve fazer. Pelo olhar do curto prazo vale a pena desmatar e plantar, mas no longo prazo não gera desenvolvimento econômico e social. A narrativa é equivocada.

SAIBA MAIS

A Tropical Forest Alliance 2020 (TFA 2020) é uma parceria público-privada global na qual os parceiros adotam ações voluntárias, individualmente e em conjunto, para reduzir o desmatamento tropical associado ao abastecimento de commodities como óleo de palma, soja, carne, polpa e papel.

Preservar e restaurar florestas é fator crítico para evitar as alterações climáticas mais perigosas e alcançar metas globais. Dados apontam que cerca de 10% das emissões globais de gases efeito estufa estão ligados ao desmatamento; e até 20% de todo o potencial de redução está associado ao setor de utilização da terra.

As florestas também são extremamente importantes para a segurança alimentar, a segurança da água e dos meios de subsistência, de modo que a conservação e restauração das florestas ocupam um lugar destacado nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (SDGs – Sustainable Development Goals) aprovados pelas Nações Unidas em 2015.

Cadeias de abastecimento sem desmatamento são críticas para um reduzido desenvolvimento de emissões. Com a previsão da população mundial chegar a 9 bilhões até 2050, estima-se que serão necessárias 70% mais calorias de alimentos, e a demanda por produtos de madeira também continuará a aumentar. Ao longo das últimas décadas, o atendimento da crescente demanda por alimentos e bens de consumo, muitas vezes, ocorreu às custas das florestas, tendo a agricultura comercial como a principal causa do desmatamento tropical.

Nos últimos anos, esta questão gerou um nível de compromisso sem precedentes para deter o desmatamento impulsionado pelas commodities de nações, empresas, povos indígenas e outras organizações, atingindo metas ambiciosas de reflorestamento e restauração florestal. A TFA foi desenvolvida para ajudar a alcançar estes compromissos através de colaborações público-privadas dedicadas.

simonekafruni

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