Coluna no Correio: Pacto contra o contribuinte

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POR PAULO SILVA PINTO

 

Há boas razões para comemorar o acordo de renegociação das dívidas entre unidades da Federação e a União, sacramentada ontem pelo Supremo Tribunal Federal (STF). E também para lamentar, e muito. Vamos começar pelas vantagens. Os estados, as prefeituras das principais capitais e o Distrito Federal estão com a corda no pescoço. Em muitos casos, não há dinheiro para pagar salários e despesas básicas. O acordo permitirá a volta de uma certa normalidade para administrar o dia a dia.

 

O governo federal ganha por ter um problema a menos na lista. Isso ajuda a pavimentar o caminho para acabar com a crise maior. O país está atolado em uma recessão que deverá resultar em queda de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) ao longo de três anos. O reflexo mais dramático disso hoje são os 11,4 milhões de desempregados nas ruas.

 

O acordo significa que o governo poderá mudar o foco para outras frentes — e são muitas a ser enfrentadas. Deverá contar com maior apoio no Congresso Nacional, já que deixar governadores e prefeitos felizes significa que os deputados e senadores de que são aliados terão maior boa vontade para aprovar medidas.

 

Até agora, o governo interino conseguiu grandes vitórias no Legislativo, algo que era impensável há poucos meses. A meta fiscal estabelecida na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) foi alterada, com previsão de deficit de R$ 170,5 bilhões. Isso livra o Executivo do risco de autorizar gastos que coloquem o resultado fiscal em risco, o que poderia causar acusação de crime de responsabilidade, como a que recai sobre a presidente Dilma Rousseff no processo de impeachment.

 

Chancela

 

Além de mudar a LDO, o governo interino conseguiu aprovar o nome do novo presidente do Banco Central (BC), Ilan Goldfajn, pelos senadores, aos quais compete a chancela do comando da autoridade monetária. Na Câmara, conseguiu com folga a aprovação da Desvinculação de Receitas da União (DRU), emenda à Constituição que permite maior liberdade para a distribuição de recursos. Depende agora da anuência do Senado, que certamente sairá, porque a matéria beneficia também estados e municípios.

 

Mesmo com as vitórias contabilizadas, o governo precisará de muito apoio para outras matérias mais indigestas. A primeira é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que limita o aumento dos gastos públicos à inflação, sem permitir, portanto, alta real das despesas. Uma vez que isso tenha sido resolvido, haverá outra etapa mais complicada: a reforma da Previdência. O tema é tão espinhoso que o Executivo ainda está longe de fechar um projeto.

 

Além de liberar a energia de técnicos, de ganhar apoio no Congresso, o governo consegue se livrar de um imenso risco: o julgamento pelo STF da reivindicação de alguns estados para que fosse os cálculos da dívida fosse feito por juros simples e não por juros compostos, sistema usado no Brasil e em quase todo o mundo para a atualização do saldo devedor. Se essa sandice fosse aceita — e era grande o risco de que isso ocorresse  — o prejuízo para o Tesouro Nacional seria imenso.

 

Com um elenco tão grande de vantagens, parece até implicância falar dos inconvenientes. Essa lista é mais sucinta do que a de pontos negativos, porém não menos significativa, ao contrário. Antes de mais nada, há o custo. Serão R$ 50 bilhões de que a União terá de abrir mão ao longo de três anos.

 

Mas há um problema ainda maior: o moral. Vários estados fizeram esforços para se organizar suas contas, caso do Espírito Santo. Outros não. Gastaram à vontade. Deram aumento para os funcionários públicos baseando-se não em aumento de receita, mas de expectativa de aumento. Torraram tributos, royalties etc. Todos, os irresponsáveis e os outros, acabaram tendo tratamento igual. “O governo está mandando uma mensagem clara: pode ser frouxo que depois te ajudam”, nota o professor de finanças do Ibmec Marcos Melo. “A população dos estados nos quais foram feitos esforços acabou prejudicada. Ela poderia ter tido acesso a mais benefícios antes, pois o alívio viria de qualquer maneira”, explica.

 

Tradição de leniência

 

Não se trata de algo inédito no Brasil. Apenas confirma uma tradição. É possível ignorar deveres, pois depois virá o perdão. Isso vale para muitas coisas, mas destaca-se na área fiscal. Empresas ignoram reiteradamente suas obrigações tributárias contando de antemão com o Refis, programa de refinanciamento que permite quitar os débitos com desconto. Auditores fiscais da Receita são radicalmente contra esse tipo de procedimento. Mas não adianta. Volta e meia o governo aparece com a medida, para engordar a arrecadação a curto prazo e satisfazer o choro de um grupo específico de cidadãos, os mais ricos. O contribuinte médio sai prejudicado com todas essas bondades, que impedem a redução da imensa carga tributária que existe no Brasil.

 

Um dos objetivos do presidente interino, Michel Temer, é refazer o pacto federativo. O ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega vê o próprio termo com muita reserva. “Isso sempre esteve associado à transferência de recursos da União para os estados e municípios, sem a transferência de responsabilidades”, disse ele em entrevista recente ao Correio.

 

Maílson lembra que, no fim do governo Geisel, o Fundo de Participação dos Estados era de 10% do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e do Imposto de Renda (IR). No fim do governo Figueiredo, já era 24%. No início do governo Sarney, 33%. A Constituição elevou a fatia para 47%. E agora está em 49%. Mais 10% do IPI vão para compensar supostas perdas com a exportações. Por conta disso, o governo federal hoje fica com apenas 34% do imposto.

 

“Os cinco mil prefeitos do país se acostumaram a ir todo ano para Brasília e tomar um pouco mais da União”, comenta o ex-ministro. E grande parte dos municípios seriam inviáveis se não recebessem mesada. Alguns são meras máquinas que servem para sustentar prefeitos e vereadores, sem prestar serviços decentes à população.

 

Brasília, 00h01min