Coluna no Correio: Já vai tarde

Publicado em Economia

A iniciativa da nova presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, de quebrar o protocolo e iniciar seu discurso de posse fazendo uma reverência à “sua excelência, o povo” foi emblemática. O Brasil vive, talvez, um dos momentos mais terríveis da sua história, combinando corrupção, recessão e desemprego. A maior vítima desse quadro perverso é a população, à qual cabe arcar com a fatura, seja por meio de mais impostos, seja por intermédio de péssimos serviços públicos e de privação de itens básicos no dia a dia. A ministra foi enfática: “Não temos o Brasil que queremos”.

 

Os deputados, felizmente, decidiram contribuir para dar alento à tanta decepção e frustração. Apesar de todas as manobras, cassaram o mandato de Eduardo Cunha. Não havia mais como o país conviver com uma pessoa tão nefasta na Casa onde estão os representantes do povo. Era um insulto à população a Câmara manter como legislador alguém que responde a dois processos no STF por lavagem de dinheiro e corrupção. Cunha só não foi preso ainda devido ao foro privilegiado que detinha, aberração que favorece um grupo restrito, afeito a ações nada republicanas.

 

A cassação de Cunha se tornou uma obrigação. Um caminho diferente desse seria a desmoralização total da Câmara. Num país sério, o poder Legislativo é referência e visto com reverência. No Brasil, porém, se tornou o que há de pior. O mais humilde dos cidadãos, quando perguntado sobre o que fazem os deputados, responde que coisa boa não é. Os parlamentares são vistos como pessoas preocupadas em encher o próprio bolso, em detrimento do país. Procuram se eleger apenas para tirar proveito pessoal do cargo. Nunca para contribuir para a melhora das condições de vida da população.

 

À margem da lei

 

Os deputados foram complacentes demais com Cunha. Aceitaram todas as manobras que resultaram no mais longo processo conduzido pela Câmara. Ele usou e abusou de sua influência para manipular informações, chantagear colegas e desafiar a Justiça. Mentiu descaradamente ao dizer que não tinha contas secretas na Suíça. Quebrou o decoro acreditando que ninguém teria coragem de lhe tirar os direitos políticos. Agora, sem a proteção do cargo, irá direto para as mãos do juiz Sérgio Moro. Cunha terá o lugar que merece, a prisão.

 

A cassação de Cunha é um presente para os trabalhadores de bem. Esse país não pode mais aceitar, passivamente, que alguns privilegiados vivam às margens da lei, como se fossem intocáveis. O histórico do deputado é impressionante. Desde que entrou para a vida pública, esteve metido em falcatruas. Nunca foi pego, justamente porque soube usar, como ninguém, a proteção que o Estado lhe deu para fugir das garras da Justiça.

 

Com as irregularidades, as propinas, as relações incestuosas com o poder, construiu uma máquina de financiamento de campanha que lhe permitiu ficar por tanto tempo na Casa do povo. O modelo político, em que os mais votados nem sempre são os eleitos, o favoreceu em várias oportunidades. Para construir seu feudo na Câmara, usou parte do dinheiro amealhado com a corrupção. A rede de proteção, enfim, se rompeu.

 

Até o último instante, Cunha acreditou no seu poder de manipulação. Mas ninguém se rendeu a suas ameaças, a seus apelos e ao falso choro. Cunha não caiu porque deu início ao processo de impeachment de Dilma Rousseff ou porque enfrentou o PT. Cunha caiu por todos os crimes de cometeu. A cassação de seu mandato vai virar uma página da história que não deve ser esquecida. Sua excelência, o povo, precisa se lembrar, todas as vezes em que for depositar o voto nas urnas, dos riscos de se eleger uma pessoa como Cunha, que já vai tarde.

 

Delinquentes

 

Os recados de que não há espaço para novos Cunhas foram explícitos na posse de Cármen Lúcia na Presidência do Supremo. Ministro mais antigo da Corte, Celso de Mello pediu um basta à corrupção. Citando o ex-presidente da Câmara Ulysses Guimarães, afirmou que “não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube” é o primeiro fundamento da moral pública. Na avaliação de Mello, acabaram os tempos de “delinquência governamental” e dos “marginais da República”. A população quer e merece respeito.

 

O ministro foi além, ainda citando Ulysses: “A corrupção é o cupim da República. A República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam”. Para o ministro, “as práticas delituosas, que tanto afetam a estabilidade e a segurança da sociedade, ainda mais quando perpetradas por intermédio de organizações criminosas, enfraquecem as instituições, corrompem os valores da democracia, da ética e da justiça e comprometem a própria sustentabilidade do Estado Democrático de Direito”.

 

O Brasil, a duras penas, está expondo suas feridas para que tempos melhores possam vir. A sociedade precisa acreditar que é possível conviver com políticos honestos, que coloquem o bem de todos acima de tudo. Nesse país melhor não há espaço para Eduardo Cunha e seus asseclas. O momento, agora, é de limpeza ética. Como disse Celso de Mello, a “atuação criminosa tem o efeito deletério de subverter a dignidade da função política e da própria atividade governamental, degradando-as ao plano subalterno da delinquência institucional e transformando-as em um meio desprezível de enriquecimento ilícito”. A cassação de Cunha é um momento histórico.

 

Brasília, 05h02min