“Chegou a hora da verdade”, diz Kawall

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POR PAULO SILVA PINTO

 

O economista-chefe do Banco Safra, Carlos Kawall, é um entusiasta da proposta de teto para os gastos públicos, que o governo pretende enviar ao Congresso. E não é de hoje. Como secretário do Tesouro Nacional, em 2006, início da gestão de Guido Mantega no Ministério da Fazenda, ele defendeu a proposta, que era discutida na equipe, mas nunca emplacou.

A ideia atual, ele destaca, é muito melhor, porque envolve mudança constitucional, e, com isso, será possível controlar gastos determinados pela Carta Magna. Kawall não tem dúvidas de que a população, se fosse chamada a opinar, seria favorável à regra. “A beleza é que essa ideia atrai, porque as pessoas acham que tudo tem que ter limite”, diz.

Depois dos oito meses que passou no governo, o economista se transformou em uma das principais referências como analista de mercado, primeiro no Citibank; depois, no Safra. Mesmo longe da Esplanada dos Ministérios, colaborou com a equipe do ministro Nelson Barbosa, antecessor de Henrique Meirelles, na elaboração da proposta de um depósito remunerado das instituições financeiras no Banco Central. Isso substituiria as operações compromissadas, mecanismo usado para o controle da liquidez que acaba por gerar distorções regulatórias, sobretudo na definição do tamanho da dívida pública.

Kawall nota, aliás, que a equipe de Barbosa já havia avançado bastante na discussão de um mecanismo de controle de gastos públicos, ainda sem chegar, porém, à ambição da emenda constitucional que Meirelles promete enviar ao Congresso. O economista acredita que a proposta está madura para ser colocada em prática. Mas, se for rejeitada, será uma escolha da sociedade por uma inflação mais alta. Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista ao Correio.

 

15/08/2006. Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF. Secretario do Tesouro Nacional, Carlos Kawall, no Ministério da Fazenda.
Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press

 

Como vê o primeiro mês do governo do presidente interino, Michel Temer?
O mais importante, neste momento, é constatar que há um diagnóstico para a economia. Vamos ver propostas de reformas, que serão enviadas em breve ao Congresso. A ideia é que o país precisa enfrentar o desajuste das contas públicas de forma estrutural. Isso não se desvia radicalmente do que era proposto pela equipe anterior do Ministério da Fazenda, a qual determinou que o gasto público fosse contido sob certas condições. Ia, portanto, no sentido do teto de gastos, mas tinha o vício de não envolver dispositivo constitucional, portanto, não afetando gastos obrigatórios. Mesmo assim, já era claro para eles que a recuperação cíclica do crescimento do país não permitirá a adequação das contas públicas. Comparativamente, o Estado brasileiro gasta mais do que em outros países emergentes, e isso é incompatível com crescimento econômico.

 

Qual o benefício que o limite para aumento dos gastos públicos proporcionará se for aprovado pelo Congresso?
Permitirá que, independentemente de quem assumir o governo a partir de 2019, haverá uma trajetória crível em um ambiente de inflação baixa e de crescimento econômico. Pode ser que a sociedade brasileira prefira uma situação de inflação alta, e ascendente, e então será a hora da verdade. Se houver a rejeição da proposta de teto dos gastos, não haverá alternativa senão essa. A intenção da atual equipe é conciliar crescimento e inflação baixa, que fará com que tenhamos taxas de juros bem menores, que só serão possíveis se forem criadas as condições para que isso ocorra estruturalmente, não artificialmente.

 

É possível crescer com inflação alta?
Sim, mas será como nos anos 1980, como o famoso voo de galinha. A gente sabe que uma situação assim, de inflação alta, pune os mais desfavorecidos, há aumento da desigualdade, perdendo-se algo que melhorou muito nos últimos anos. Em um ambiente de forte aumento de preços, o crescimento é de outro padrão, com piora da distribuição de renda, desorganização da atividade produtiva e volta dos mecanismos de defesa contra a inflação. Acaba, enfim, o que achávamos que era uma conquista. Ninguém faria uma opção consciente por isso, seria inconsciente, mas, ainda assim, seria uma escolha. Se as pessoas disserem que não querem aceitar o ajuste fiscal, a solução é a inflação. Instala-se, então, a dominância fiscal, em que não se pode elevar a taxa de juros para segurar os preços porque isso afeta muito o risco Brasil.

 

Qual a vantagem do limite para gastos?
A ideia do teto de gastos é a melhor que surgiu nos últimos tempos. Conceitualmente, dá ao orçamento realismo, no sentido de que substituiu regras automáticas de vinculações e do crescimento de despesas, deixa claro o que é ou não prioridade, contendo o que é possível. Do contrário, tem que elevar a carga tributária, que, no Brasil, já é muito alta. O teto reverte a tendência, que existe desde 1997, de aumento dos gastos acima do crescimento do PIB (Produto Interno Bruto). Se for mantida ao longo de oito anos, poderemos voltar a ter superavit primário de 2% do PIB. O mecanismo é tão mais eficaz quanto maior for o avanço econômico. Se houver garantia constitucional do teto, é muito mais relevante para garantir crescimento e investimento com taxas de juros mais baixas.

 

O que se pode esperar do debate sobre o tema?
Por mais que se possa olhar com um viés de esquerda ou de direita, é a mesma matemática, que nos coloca sob risco de insolvência. Vamos ter que aguardar. A reforma da Previdência é inadiável. Já vem atrasada. Ela é sempre difícil, em qualquer sociedade ou país, pois é algo que mexe com expectativa de direito. Tem de ser feita com todo o cuidado, na forma da regra de transição, mas é algo que significará que o país está olhando para frente, para resolver o problema de futuras gerações. O descuido que temos de equacionar é algo intergeracional. Ter um gasto de 3% ou 4% do PIB a mais daqui a alguns anos é um impeditivo do crescimento de longo prazo. Todos os países discutem hoje elevação da idade mínima. Nós sequer a temos.

 

O governo terá capacidade política para aprovar reformas?
Minha capacidade de prever a dinâmica política não é melhor do que a de ninguém. De um jeito ou de outro, a sociedade vai ser chamada a decidir sobre seu futuro. Estamos em uma crise sem precedentes, com desemprego que, nós economistas antevemos, chegará a 13% ou 14%. A boa notícia é que, às vezes, a gente erra. A coisa mais dramática a curto prazo é atacar o deficit público. Há um conjunto de questões a serem atacadas, incluindo mudanças do sistema tributário, mudanças na rigidez das regras trabalhistas e o robustecimento do programa de concessões. Mas o problema crítico a ser resolvido, que pode levar à morte do paciente, é a questão fiscal. Se for atacar antes, por exemplo, a reforma tributária será um erro. O fiscal é o que está nos fazendo sangrar e ter uma crise mais dramática.

 

É possível baixar juros no segundo semestre?
Embora a inflação tenha surpreendido para cima, está em uma trajetória benigna. Estamos em uma recessão sem precedentes. Mesmo aquilo em que se via grande resistência, como os preços dos serviços, está mostrando tendência lenta e consistente de melhora. No caso de alimentos, parece que tudo o que pode acontecer de errado está acontecendo. Acho que é possível uma queda da taxa Selic a partir de agosto, embora possa ser um pouco mais à frente. No fim do próximo ano, podemos chegar a juros em torno de 10%, ou mesmo de um dígito.

 

O que deve ser feito com a política cambial?
O Banco Central não pode trabalhar com a ideia de piso para o dólar. É preciso entender que, neste momento, há uma movimentação forte do mercado de trabalho dos Estados Unidos, que perde a força, e reduz o ímpeto do Fed (o BC dos Estados Unidos) para elevar a taxas de juros. Isso explica a recente valorização do real. Houve uma intervenção maciça do BC no mercado de câmbio a partir do terceiro trimestre do ano passado, que resultou em um estoque de cerca de R$ 60 bilhões em contratos de swap (equivalentes à venda de dólar no mercado futuro). Agora, é preciso administrar isso, não dá para sentar e olhar. A partir de setembro, nada vence.

 

O que achou do aumento concedido aos funcionários públicos?
Foi uma das opções disponíveis, e veio do fato de que já havia acordos, que se achou por bem não reverter. O fato de haver um reajuste em linha com a inflação para a maior parte das categorias já é coerente com um teto para o aumento de gastos. Mas é preciso fazer isso com outras despesas também, incluindo saúde e educação. O importante é que se sinalize para uma trajetória favorável para a dívida. Há outras formas de conseguir isso além do superavit primário, como a venda de ativos e o que se está fazendo com o BNDES (devolução de R$ 100 bilhões ao governo). Essas opções sempre fizeram parte da realidade empresarial, ajustar as despesas e priorizar atividades essenciais aos negócios.

 

Quando se entra em uma situação de dominância fiscal?
Não há uma fórmula mágica para determinar isso. Se não conseguirmos gerar as medidas necessárias para o ajuste, então passaremos a uma dinâmica perversa, em que aumenta o risco, há pressão na taxa de câmbio, a inflação dispara, há maior dificuldade para reduzir os juros, a recessão se aprofunda e há desvalorização do salário real. Conscientemente ou não, a sociedade pode optar por isso. A inflação é poderosa para conter o gasto do governo. Seria uma solução por mal, caso não haja bom senso.

 

Subsídios não aumentaram muito o deficit também?
Sim. É uma carga que vai gerar ônus até 2019. Mas não se trata de um gasto contínuo, é discricionário, diferentemente do gasto social. É preciso fazer alguma coisa para contê-lo. Seria interessante uma pesquisa que perguntasse às pessoas se acham que deve haver um limite para o crescimento do gasto público. A beleza é que essa ideia atrai, porque as pessoas acham tudo tem que ter limite. Uma pessoa que se aposenta aos 55 anos e acumula esse benefício com um salário não está obtendo um benefício e, sim, um empréstimo que vai ser pago por gerações futuras, assim como um empresário que obtém subsídio vai pagar isso mais tarde na forma de juros mais altos para todos. Com um governo fortemente deficitário, não haverá outro jeito.

 

Se o processo de impeachment for rejeitado e Dilma voltar ao Planalto, acha que ela tomará essas medidas?
Não vejo alternativa. Se essa opção prevalecer, significará que ela tem maior capacidade de aprovar medidas do que o presidente interino. Pode ocorrer também um aprofundamento da crise, que nos leve realmente a uma depressão econômica e, finalmente, à consciência da necessidade de reformas. Mas acho que já foi suficiente o que tivemos até agora. Vamos nos contentar com esse estrago.

 

Brasília, 10h01min