Garantindo igualdade desde o berço a partir da saúde

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Os centros de saúde são a porta de entrada para o programa Chile Crece Contigo que, além de agir com o objetivo de que cada criança desenvolva todo seu potencial, ataca desigualdades

Patrícia Lopez, educadora infantil, e Rodrigo Cabezas, terapeuta de motricidade, na sala de estimulação de centro de saúde chileno

Santiago, Chile — Em La Pintana, a comuna mais pobre da região metropolitana da capital chilena, com 198 mil habitantes, o Centro de Salud Familiar (Cesfam) El Roble é um dos sete do tipo a atender a população local. Cerca de 177 mil pessoas, entre essas, 22 mil de até 9 anos, fazem uso do sistema público de saúde na região. É nesse tipo de espaço que costuma ocorrer o primeiro contato de famílias e crianças pequenas com o programa Chile Crece Contigo, ainda durante a gravidez, no pré-natal, prosseguindo após o nascimento, nas consultas de acompanhamento.

É como se os centros de saúde fossem a porta de entrada para as outras frentes do sistema, pois é lá que pais e mães participam de oficinas para aprender os melhores cuidados e formas de estimular os filhos a cada fase da vida, além de receberem kits. Desde a implementação da política pública, em 2006, os serviços passaram a ser cada vez mais integrados. Esses centros contam, por exemplo, com sala de estimulação para atacar desde cedo e prevenir a intensificação de qualquer tipo de déficit ou atraso no desenvolvimento. Nesses espaços, médicos e enfermeiros trabalham com fonoaudiólogos, terapeutas e profissionais de educação infantil.

“Fomos um dos centros pioneiros em ter educadora”, conta Francis Ciampi, diretora da unidade El Roble, referindo-se à Patrícia Lopez, educadora infantil do Chile Crece Contigo. “Antes desse programa, ter fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional e educadora era algo impensável dentro de uma unidade de saúde primária”, relata Patrícia. “O mais bonito da iniciativa é ajudar a acabar com as lacunas da desigualdade do nosso país, que são muitas. E começa-se a atacar essas desigualdades desde a barriga, desde o berço, para que crianças pobres consigam ter as mesmas chances de desenvolvimento que as ricas”, afirma. Ou seja, permitir condições de início equivalentes para que o resto da vida também seja mais igualitário, na escola e no mundo do trabalho.

O médico Marcelo Ortega; a diretora do centro de saúde, Francis Ciampi; e diretora do centro; e a encarregada da comuna La Pintana, Valeria Guzmán

 

“O que é possível graças a essa intervenção integral proposta pelo programa, juntando diversos profissionais e áreas para priorizar a infância”, completa Francis. “O Chile Crece Contigo veio para potencializar as estratégias que oferecíamos antes, mas de forma desordenada, agora, de jeito coeso, conseguindo também identificar melhor e agir mais rápido em situações de risco”, diz Francis. “A cada contato com as famílias, são registrados alertas de vulnerabilidade. Por exemplo, mãe com escolaridade incompleta, criança com deficiência, família com esse ou aquele problema. E, a partir de um alerta desses, ações específicas serão implementadas para atender melhor aquela criança”, observa Valeria Guzmán, encarregada da comuna de La Pintana.

Os efeitos são esperados a longo prazo, como esclarece Rodrigo Cabezas, profissional do Fondo de Intervenciones de Apoyo al Desarrollo Infantil que trabalha na sala de estimulação com terapia psicomotora. “A lei do Chile Crece Contigo não é de muito tempo atrás. Então, veremos os resultados das intervenções lá na frente, na adolescência, na universidade. Se um menino tem dificuldade de andar agora, quando vem à sala de estimulação, os pais podem pensar que estamos apenas agindo para que esse garoto consiga fazer melhor as coisas agora. Mas não é só isso, pois o trabalho age no físico e no cognitivo”, aponta. “Com as atividades, estamos dando à criança a chance de desenvolver as distintas competências necessárias no mundo atual.”

Qualidade superior

Desde a implementação do programa multissetorial de proteção à primeira infância no país, os pais recebem, além de orientações sobre como cuidar e estimular os filhos a cada fase, kits de materiais ao comparecer aos centros de saúde. Durante a gestação, são entregues agenda, guias da gravidez, CD de músicas para tocar para o bebê ainda no útero, DVD com exercícios pré-natais, guia de paternidade ativa e corresponsável para pais. Ao nascer, há distribuição de berço portátil, colchão e jogo de fronha, lençol e manta, tapete de EVA, livros, DVD com lições educativas, móvel de estimulação, mochila para carregar itens infantis, toalha, trocador, artigos de higiene (como sabão e pomada), fraldas e roupas.

Materiais de estimulação continuam sendo entregues aos quatro meses e também quando a criança completa 1, 2, 3 e 4 anos. Outros itens são distribuídos ainda quando os pais participam de oficinas e quando há necessidades específicas. Por exemplo, se há um diagnóstico de deficiência ou doença, há equipamentos para estimulação especializados. Existe um kit lúdico de apoio para meninos e meninas em situação de emergência, como terremoto ou outro tipo de desastre. Todos os kits são tão completos que chamam a atenção.

“Ninguém fazia coisa da melhor qualidade para a rede pública antes. Então, os artigos são tão bons que até quem procura atendimento na rede particular gostaria de receber”, comenta Alejandra Cortazar, doutora em políticas para a primeira infância pela Universidade de Columbia. Isso incentiva que os pais levem os filhos para as consultas de acompanhamento nos centros de saúde, pois é lá que receberão os materiais. “Tudo de primeira qualidade realmente, tanto que a taxa de satisfação ultrapassa os 85%”, observa Jeanet Leguas Vásquez, porta-voz do Ministério de Desenvolvimento Social do Chile.

 

*A jornalista viajou como bolsista do programa de reportagens sobre primeira infância do International Center for Journalists (ICFJ), com patrocínio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV)

 

O centro comunitário que se tornou jardim de infância: conheça experiência de modelo alternativo de educação infantil no Chile

Publicado em Deixe um comentárioChile Crece Contigo, Creche

Santiago, Chile — Do lado de fora, parece uma casa como as outras da rua, térrea e simples, com grades no portão. Por dentro, porém, a edificação, mesmo que modesta, abriga um universo de diversão, aprendizado, afeto e arte para 20 crianças de 2 anos a 5 anos e 11 meses. Assim é o único Centro Educativo Cultural de la Infancia (Ceci) localizado na comuna de La Granja, em Santiago, no Chile. Nesse modelo de educação infantil, todos convivem juntos em uma única sala, onde brincam, ouvem histórias, fazem desenhos e pinturas, além de almoçar. Muito além da estrutura ou de qualquer outro aspecto, o que faz a diferença ali, como contam as famílias, é a dedicação das duas educadoras, Cecilia Férnandez e Gladys Hormazaval.

20 alunos frequentam o local

“Sou apaixonada pelo que faço. Fico encantada com a pureza das crianças”, conta Gladys. O amor pela atividade é visível em tudo o que faz. Para explicar, por exemplo, a uma menina de 3 anos que ela não pode sair da sala enquanto os outros almoçam, não se limita a ordenar ou proibir. A funcionária senta com a garota e esclarece que, naquele momento, se ela ficar no quintal, estará sozinha, pois durante o almoço, as “tias” precisam ajudar as outras crianças a comer. “E se você cair e se machucar, doerá em você e também em mim. Sofreremos as duas.” A mesma gentileza e sensibilidade observa-se em Cecilia.

A educadora Cecilia trabalha no local desde que ele foi fundado, na década de 1970

“A convivência com as crianças e as famílias sempre foi fácil para nós, pois nos baseamos no respeito. Há algumas muito ativas, outras mais reservadas, e aceitamos o jeito de cada uma. Não são elas que têm de se adaptar a nós, mas o contrário”, afirma Cecilia. Ali, meninos e meninas são livres para brincar com o que quiserem e só existe uma regra, baseada na consideração pelos demais: “É preciso respeitar o amiguinho, se ele está usando um brinquedo, por exemplo, tem de esperá-lo parar de usar”. Com o convívio social, é possível notar o desenvolvimento de cada aluno.

Gladys cuida das crianças com carinho de mãe e avó

Experiência aprovada

“Uma das crianças aqui tem autismo, e o pai estava desesperançoso quando a trouxe para cá, mas, em pouco tempo, as mudanças eram visíveis. Ele conta que o filho mudou demais, socializa, participa das atividades”, comemora. Os bons resultados também têm como componente fundamental a participação ativa das famílias que não só comparecem a reuniões, mas avaliam as funcionárias periodicamente e são estimuladas a contribuir com os projetos da instituição, cada uma como puder. Os pais de Agustín Vergara, 5 anos, por exemplo, fazem móveis em madeira e trouxeram para o centro infantil um esqueleto de baleia em madeira, quando a turma estava investigando esse animal.

Agustín e a mãe, Evelin, mostra réplica de apiário de madeira feita pela família e levada para o centro

Em outra ocasião, quando as crianças estavam aprendendo sobre as abelhas, produziram a réplica de um apiário. Os temas que motivam as atividades são escolhidos pelas próprias crianças. Evelin Gallardo, mãe de Agustín, conta que dois tios do filho frequentaram o espaço durante a infância. “Por isso, procuramos esse lugar, que é excelente, a comida é de qualidade, tudo é bem-feito. O que realmente faz a diferença são as ‘tias’. O Agustín está aqui há três anos e melhorou muito na maneira de expressar ideias.” O garoto é um dos mais sociáveis da sala, gosta de puxar conversa com todo mundo.

Luciana e a avó, Cecilia

Volta e meia diz aos outros que tem superpoderes: “O principal é o da supervelocidade”, brinca. Luciana Poblete Sepulteda, 5, diz que tem muitos amigos ali no centro infantil. “O que eu mais gosto aqui é descobrir sobre os animais, como a baleia”, conta. Ela mora perto do centro infantil e costuma ser buscada pela avó, Cecilia Cabierre, que é só elogios para a instituição. “É um espaço muito bom. Nesses dois anos, a Luciana aprendeu mais sobre compartilhar, dividir com os outros e socializar”, diz. Os Cecis são uma das modalidades alternativas ligadas à Junji (Junta Nacional de Jardines Infantiles). Esse tipo de espaço é sempre cedido e administrado por alguma organização social, recebendo fundos do governo. Cada estabelecimento pode atender até 32 crianças em período parcial de segunda a sexta-feira. À noite, são realizadas atividades com a comunidade.

 

Modelo diferente

O Ceci de La Granja surgiu como um centro comunitário de mães na década de 1970. “Durante o período da ditadura (que durou de 1973 a 1990), havia muitas famílias entristecidas. Muitos maridos tiveram de imigrar, e as esposas ficaram sozinhas. Éramos mães, mulheres da comunidade, que não tínhamos nada e começamos a trabalhar aqui tecendo lã, que vendíamos para o exterior”, recorda Cecilia. Elas não tinham com quem deixar os filhos, então vinham com eles para o espaço. Com o passar do tempo, cada vez mais integrantes passaram a trabalhar fora, então o que antes era um lugar para fazer artesanato na presença das crianças acabou se tornando um ambiente para acolher a meninada, mantido por mulheres da região.

“Recebíamos doações de alimentos, como queijo e leite, de ONGs e, em 1987, escrevemos uma carta à Junji pedindo ajuda para que fornecessem alimentação completa para os meninos”, afirma Cecilia, cujos três filhos e três netos frequentaram o espaço durante a infância. A existência e a continuidade do centro é prova do esforço das funcionárias e do envolvimento da comunidade com ele, pois os desafios não foram poucos. “Antes, tínhamos muitos cômodos, então atendíamos mais crianças, divididas em três turmas, até passarmos por um incêndio”, relata Cecilia. A casa ficou destruída depois que o fogo, que começou em um vizinho, se alastrou para ali.

Natalia Jimena Tapia Arévaldo, profissional de gestão de programas da Junji, e Paulina Saldaño Aránguiz, funcionária do sistema de proteção à infância do programa Chile Crece Contigo

A edificação (que hoje conta com dois salões, um onde funciona o centro infantil, e outro onde são oferecidas oficinas para avós) foi reconstruída pelas próprias famílias. Durante as obras, a iniciativa funcionou por dois anos em uma capela e por mais um em um colégio. Depois disso, o local passou a receber, além de alimentação de Junji, recursos do governo, tornando-se um Ceci. Natalia Jimena Tapia Arévaldo, profissional de gestão de programas da Junji, explica que cada unidade do tipo tem particulares, mas o que caracteriza a todos é o senso de comunidade. “A participação é muito grande. Se os pais trabalham e não podem vir ali pessoalmente, mandam algo”, observa.

“Existe a noção de que a responsabilidade não é só da instituição, pois a família é a primeira fonte educadora”, explica. “E, assim, os Cecis acabam sendo, muitas vezes, mais legitimados pela população, há mais confiança por parte dos pais, pois eles também participam do processo e conhecem os funcionários”, completa Paulina Saldaño Aránguiz, funcionária do sistema de proteção à infância do programa Chile Crece Contigo.

 

>> Leia amanhã sobre o atendimento de saúde a crianças e famílias no Chile

*A jornalista viajou como bolsista do programa de reportagens sobre primeira infância do International Center for Journalists (ICFJ), com patrocínio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV)

Chile também enfrenta desafios para universalizar a educação infantil, especialmente até os 3 anos

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Santiago, Chile — Capacitações e avaliações permanentes de professores garantem a qualidade do atendimento de crianças de até 6 anos em ambientes educativos chilenos. Apesar de ter avançado, o país também tem, como o Brasil, o desafio de ampliar o acesso a creches e jardins de infância, especialmente até os 3 anos de idade. Por lá, a educação infantil é obrigatória entre os 5 e os 6 anos, quando as crianças frequentam o nível chamado Kinder.

O Jardín Infantil Santa Mónica, em Santiago

Nessa faixa etária, a cobertura passou de 85%, em 2001, para 98%, em 2017. No mesmo intervalo, a cobertura de educação infantil como um todo saltou de 30% para 53,24%. A universalização antes dos 5 anos é um desafio e uma das metas da Junta Nacional de Jardines Infantiles (Junji), instituição pública responsável pela administração e fiscalização de creches e jardins de infância no país desde 1970. No total, cerca de 793 mil meninos e meninas têm acesso à educação infantil por lá, dos quais apenas 6% frequentam instituições pagas.

Nas unidades, o desenvolvimento de cada criança é acompanhado e relatado diariamente, como nesse quadro de evolução

Cerca de metade está em unidades públicas; e 43% em entidades particulares, mas com subvenção do governo. Enquanto o acesso não se torna universal, são atendidas prioritariamente as crianças das famílias mais pobres e as de até 4 anos. No total, a Junji administra 1.276 jardins de infância no país, 654 clássicos (fundados, mantidos e administrados pelo governo) e 622 alternativos (que recebem dinheiro público, mas a gestão é de alguma organização social). Belia Toro, chefe de desenvolvimento curricular da Junji, conta que, apesar de a Junta ter 48 anos e tradição em educação infantil, muito mudou após a criação do programa Chile Crece Contigo, há 12 anos. “A partir disso, passou a existir, além de um trabalho multissetorial (que precisa se intensificar), uma ideia de educação para a família, não só para as crianças”, aponta.

Adriana Gaete Somarriva e Belia Toro, da Junji (Junta Nacional de Jardines Infantiles)

“Há uma série de materiais, oficinas e elementos de apoio para os pais”, completa. Adriana Gaete Somarriva, vice-presidente executiva da Junji, conta que a capacitação e a avaliação permanente de professores é prioridade na rede. Graças a isso, a oferta de educação infantil é de alta qualidade. “Eu tive muita experiência em escolas de educação básica. E, entre as crianças que estão chegando, você nota imediatamente quais são as que passaram por educação infantil e as que não. Pois o tempo que demoram a aprender a ler é muito menor”, compara. “Apesar de não serem alfabetizadas nesse período, elas têm um bom desenvolvimento na linguagem que faz toda a diferença”, afirma.

Exemplo de sala de aula de jardim infantil no Chile

Comparações

O Brasil tem 8,5 milhões de crianças matriculadas na educação infantil, o que inclui creche e pré-escola. No Chile, as matrículas são da ordem de 793 mil — quase 11 vezes menos. O vizinho latino-americano também tem população e terreno mais de 11 vezes menores que os brasileiros. Há diferenças, mas também similaridades: ambos os países precisam trabalhar para ampliar o acesso à educação infantil.

Por aqui, a meta do Plano Nacional de Educação (PNE) é ter, pelo menos, 50% das crianças de até 3 anos frequentando creches, mas correlacionando dados das Sinopses Estatísticas da Educação Básica de 2017 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), apenas 26% o fazem.

Um dos pátios do Jardín Infantil Santa Mónica, na comuna de Recoleta

No Chile, a taxa média de matrículas até os 3 anos está em patamar similar, mas ligeiramente maior que o do Brasil: cerca de 29%. Uma grande diferença é que boa parte da oferta brasileira é particular, enquanto no Chile é majoritariamente pública. Outra questão é que a procura dos próprios pais chilenos por matrículas até os 3 anos ainda não é tão alta, de acordo com avaliação da Junji.

Educadoras e crianças em uma das salas do local

Numeralha
Cobertura da educação infantil no Chile por faixa etária

De 85 dias a 1 ano – 10%
De 1 ano a 2 anos – 26%
De 2 anos a 3 anos – 33%
De 3 anos a 4 anos – 64%
De 4 anos a 5 anos – 90%
De 5 a 6 anos – 98%

Fonte: Junji

Pais satisfeitos

María Jesus Arriagada, diretora da unidade

Com 31 educadoras e cinco cozinheiras, o Jardín Infantil Santa Mónica atende 236 crianças de 0 a 4 anos de segunda a sexta-feira, das 8h30 às 16h30. Ali, as crianças tomam café da manhã e almoçam. As turmas são divididas por faixa etária. A instituição se localiza na comuna de Recoleta, que, no total, tem seis jardins infantis clássicos (ou seja, fundados, mantidos e administrados pelo governo), como o de Santa Mónica, e nove que funcionam com transferências de fundos. María Jesus Arriagada, diretora da unidade, conta que há uma reunião mensal com todos os funcionários. “Nessas ocasiões, passamos um dia discutindo, promovemos capacitações, conseguimos revisar nosso projeto educativo e ver no que podemos melhorar.”

 

Susan Ramirez e filha de 1 ano e 9 meses, Florencia

Num centro maior, é mais difícil que a participação comunitária seja tão próxima quanto em unidades menores, mesmo assim, o envolvimento familiar é muito estimulado. “Os pais que podem vêm e interagem. Os que não têm como estar presencialmente podem se fazer de presentes de outras formas. Pedimos que enviem por exemplo um vídeo mostrando como é a criança na rotina do lar”, conta a diretora María Jesus. Para subsidiar o trabalho e atender melhor às necessidades de cada estudante, ela conta que troca informações e dados sobre alunos com equipes de serviço social e do centro de saúde da região.

 

A haitiana Dialine e a filha Delca

Para ela, o retorno das famílias é muito gratificante, como quando contam que a criança aprendeu algo diferente e mostrou em casa. “Muitos responsáveis que tiveram os filhos num jardim particular e vêm para cá gostam muito mais daqui. Não necessariamente a educação paga será melhor. Há um abismo de diferença entre a educação infantil pública e muitos jardins particulares”, comenta. A estudante de estética Susan Ramirez fica muito tranquila ao deixar a filha de 1 ano e 9 meses, Florencia, ali. “Vejo que ela gosta das tias. Isso é o mais importante. Mais que a estrutura, as educadoras fazem a diferença, pois são muito prestativas e dedicadas”, elogia.

Gustavo com o pai, Álvaro

A haitiana Dialine Teautij mora no Chile há pouco tempo e, apesar de falar pouco espanhol, demonstra que está satisfeita com o desenvolvimento da filha de 1 ano, Delca. “Ela fica bem e feliz aqui. Não chora para vir”, conta a vendedora numa barraca de feira. Álvaro Berrios Vergara trabalha na construção civil e busca o filho Gustavo, 3, no local quase todos os dias. “Este é o primeiro ano dele nesse jardim e vejo que é muito melhor do que o em que ele estava anteriormente, pois as tias são mais próximas dos alunos e se preocupam mais”, afirma o pai ainda de outros filhos de 16 anos, 12 anos e 10 anos. Nicolás Riquelme só tem elogios para a experiência da filha, Colomba, 3, ali.

Nicolás, Colomba e Joselyn

“A qualidade é excelente, ela me conta dos desenhos que fizeram e outras atividades.” Colomba fala com carinho de Joselyn Campillay, educadora que trabalha há três anos no local. A filha dela, Fernanda, 3, também frequenta o jardim, mas em outra turma. “É muito gostoso conviver com crianças, todos os dias há algo especial. Tenho 30 anos, mas carrego comigo a alegria da minha infância”, conta ela que também tem um filho de 12 anos.

A educadora Joselyn com a filha, Fernanda (no colo), e outras crianças

 

*A jornalista viajou como bolsista do programa de reportagens sobre primeira infância do International Center for Journalists (ICFJ), com patrocínio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV)

O que o Brasil pode aprender com o Chile sobre primeira infância?

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O empoderamento e o apoio às famílias é uma das grandes contribuições do programa

Santiago, Chile — Os rumos da primeira infância no Brasil nos próximos quatro anos foram selados com o resultado final das urnas no último domingo. A partir de 1º de janeiro de 2019, recairá sobre o presidente eleito, Jair Bolsonaro; o governador eleito do DF, Ibaneis Rocha; e os governadores dos 26 estados parte considerável da responsabilidade pelo futuro das crianças de até 6 anos do país. Com vontade política e gestão adequada, eles podem fazer muito por elas — ou não. Os novos governantes têm o potencial de acelerar e intensificar o desenvolvimento infantil, caso abracem a causa e a tratem como prioridade.

 

Um investimento que se provou melhor do que qualquer outro: além do retorno social, cada dólar gasto com o início da vida uma vez traz um retorno anual de mais de 14 centavos por criança pelo resto de seus dias. O cálculo é do economista estadunidense James Heckman, ganhador do Prêmio Nobel da área no ano 2000. Os efeitos da decisão política de priorizar a primeira infância não precisam se limitar a um mandato, desde que o tema seja objeto de uma política de Estado e não de governo. É o que aconteceu no Chile, país que mais investe na primeira infância da América Latina. Lá, o programa Chile Crece Contigo, adotado a partir de 2006, tornou-se lei em 2009 e continuou mesmo após a saída da ex-presidente Michelle Bachelet, que iniciou o projeto.

 

A política pública teve prosseguimento durante as gestões de Michelle Bachelet e Sebastián Piñera

 

Ela e Sebastián Piñera, atual presidente chileno, “revezam” o comando do país desde então. Michelle Bachelet teve dois mandatos (2006-2010 e 2014-2018) e Piñera começou, em março deste ano, seu segundo, após presidir a nação latino-americana de 2010 a 2014. Apesar de os dois serem opositores na política, quando o assunto é primeira infância, eles se tornam aliados, cada um contribuindo para a melhoria e a expansão do programa. O sistema de proteção da primeira infância do Chile tem a missão de apoiar plenamente todas as crianças e suas famílias por meio de uma abordagem multissetorial e multidimensional.

 

Na prática, elogios

 

Janira, com o filho mais novo, Vladimir, se sente apoiada pelo programa Chile Crece Contigo

 

A auxiliar de limpeza Janira Gomez Espinosa, 24 anos, cria sozinha dois filhos, de 5 e de 3 anos. A família vive em La Pintana, uma das comunas mais pobres da região metropolitana de Santiago e, apesar das dificuldades, Janira se sente muito apoiada pelos serviços do Chile Crece Contigo. “Os kits de estimulação, todos os materiais são muito bons. Por meio de folhetos e oficinas para pais, nos dão orientações sobre como cuidar das crianças. Para mim, é muito bom”, elogia. O filho mais novo, Vladimir, apresenta um atraso na fala. Janira o leva para consultas no centro de saúde da região, que conta com uma sala de estimulação e a participação de fonoaudiólogos, enfermeiros e educadores. “Todos os profissionais nos atendem muito bem.”

 

Comparação

 

Estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) de 2016 revelou que o Chile destina US$ 882 anualmente a cada criança de até 5 anos, sendo o país da América Latina que mais investe no segmento. Em segundo lugar, aparece o Brasil, reservando US$ 641 por criança nessa faixa etária. Em ambos os casos, o montante equivale a 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB). Assim como as outras nações latino-americanas, Chile e Brasil ainda investem cerca de cinco vezes mais nas crianças de 6 a 12 anos do que nas mais novas (cerca de US$ 2.608 por ano no caso do Chile; e US$ 2.179, no Brasil — 1,7% e 2,3% do PIB de cada um respectivamente).

 

Modelo replicável

 

Alejandra Cortazar, estudiosa de políticas públicas e infância

 

Alejandra Cortazar é pesquisadora do Centro de Estudios Primera Infancia. O grupo lançou um relatório de monitoramento da Agenda Regional para o Desenvolvimento Integral da Primeira Infância, acordo de metas assinado por diversos países latino-americanos, incluindo o Brasil. “A partir desse monitoramento, vemos que é consenso que Chile Crece Contigo é uma política muito relevante em termos de infância no país e na América Latina.” Tanto que o modelo foi adaptado e replicado em outros países, como Colômbia, Uruguai e Panamá.

 

Questionada se um sistema semelhante funcionaria no Brasil, Alejandra, que é doutora em políticas para a primeira infância e mestre em psicologia do desenvolvimento e da criança pela Universidade de Columbia, não tem resposta pronta. Ela avalia, porém, que, diferentemente do que se possa pensar, a dimensão geográfica e social não seria um empecilho. “O país tem de estar disposto a investir em infância para dar certo. No Chile, foi uma política feita com padrões de qualidade superaltos, o que exige um alto investimento”, pondera.

 

Membro diretora da Fundación Educacional Oportunidad e conselheira da Agencia de Calidad de la Educación, ela observa que a iniciativa foi uma mudança de paradigma com relação à qualidade que a população pode esperar de algo público no país dela. “Qualquer pessoa que tenha vivido no Chile nos últimos 10 anos sabe que houve uma mudança importante em um monte de temas a partir de Chile Crece Contigo, incluindo no processo de humanização do parto, a inclusão dos pais, o apoio às famílias, os materiais entregues, a integração de setores”, avalia.

 

“Tudo isso dignificou a infância e as famílias no processo de ser pais. É raro no Chile ver coisas públicas de excelente qualidade, e todo o material do programa é do mais alto padrão. É um tratamento muito pouco comum”, diz. “É algo totalmente diferente ao que estamos acostumados. Então, é um país que está entregando qualidade para as crianças pequenas e, assim, deixando claro para a sociedade a importância delas. Houve uma mudança de mentalidade no povo com relação a valorizar o início da vida.”

 

Resultados

 

O impacto é bastante relevante: 90% das crianças de 4 a 5 anos frequentam escola de educação infantil; a taxa de frequência de creche entre crianças de 3 anos quase dobrou entre 2006 e 2015, passando de 16,4% para 30%. Ao monitorar meninos e meninas de perto por várias frentes (saúde, assistência social e educação), é possível detectar sinais de atraso no desenvolvimento precocemente e iniciar estimulação específica, o que resultou em 42% das crianças com algum tipo de deficit acompanhando as demais. Afinal, um dos lemas do programa é “não deixar nenhuma criança para trás”.

 

A política pública abarca grande variedade de ações, desde atendimento pré-natal, promoção da paternidade ativa, subsídio para gestantes em situação de pobreza, visitas domiciliares, kits (de brinquedos, livros, roupas e outros materiais), oficinas para mães e pais, creche, jardim de infância e linha telefônica de apoio psicológico para pais. Gerido pelo Ministério de Desenvolvimento Social do país, o programa envolve também os ministérios de Educação e Saúde. O orçamento anual do programa é da ordem de US$ 83 milhões, o que não constitui todo o investimento na primeira infância no país.

 

Trabalho conjunto

 

 

Pamela Rodríguez Aceituno, professora da Pontifícia Universidade Católica do Chile

 

Bacharel em educação pela Universidade do Chile e doutora pela Universidade de Granada, Pamela Rodríguez Aceituno avalia que o programa foi um grande marco do país em relação à primeira infância. “O Chile Crece Contigo deu visibilidade à necessidade de cuidado com as crianças em um sistema público que, de alguma maneira, articule distintas ações e áreas.” Chefe de pedagogia na educação infantil da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Chile, ela acredita que uma das maiores contribuições do programa é o fortalecimento das famílias. “A política estimula o bom cuidado dos pais. Há uma cartilha e uma oficina chamada ‘Ninguém é perfeito’ que mostra que o programa não vai julgar ninguém por ser pobre, solteiro, mulher, imigrante, adolescente ou qualquer outra coisa”, diz.

 

“Ao contrário. Entendendo a sua situação, o sistema ajudará e apoiará as pessoas para que sejam bons pais e boas mães independentemente disso. É como se o governo dissesse: entendo suas condições, por isso te ajudo”, afirma. Assim, Chile Crece Contigo significou uma mudança de visão no sistema de proteção infantil. “Saímos da abordagem protecionista e tradicional, de simplesmente invalidar os pais e de recolher as crianças daqueles com menos condições para a abordagem de ajudá-los para que eles cuidem bem das crianças”, destaca. Pamela relata que muitas famílias conseguiram se reconectar com o prazer de brincar e conviver com crianças pequenas.

 

» Leia amanhã sobre como funcionam berçários, creches e jardins de infância no Chile

 

* A jornalista viajou como bolsista do programa de reportagens sobre primeira infância do International Center for Journalists (ICFJ), com patrocínio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV)