A ficção na vida real

Publicado em Crônica

 

Enfim, aposentado. Sebastião estava dispensado de repetir o ritual de décadas – não precisava mais pôr o terno, apertar a gravata e seguir cedo para o trabalho de servidor público, onde fez a vida adulta entre carimbos, processos e documentos, preocupado em prover a família de quatro filhos.

Teria todo o tempo do mundo para cuidar do jardim e escrever as histórias criadas nos curtos momentos de folga, mas que não conseguia pôr no papel. Começou arrumando pequenos trechos escritos, revisando nomes e organizando os fatos que iriam evoluir para o primeiro romance, já publicado.

É preciso acrescentar que onde estiver, ele vai acompanhado de alfarrábios amarfanhados e quase sempre colocados sob o sovaco direito, em uma pastinha de plástico. Até no boteco. Não se sabe o que há ali, mas os amigos especulam que o cuidado dedicado àqueles papéis só pode significar que é onde ele carrega o que tem de mais precioso: ideias.

E muitos dos companheiros de mesa acreditam que ali há uma verdadeira biblioteca em formação, tantas são as ideias anotadas, revisadas, riscadas, corrigidas e descartadas que esperam por uma prosa. No bar não há muito espaço para falar de literatura, mas é preciso respirar e Sebastião Pereira Lara, como todos nós, busca ar fresco.

Ele chegou muito jovem a Brasília, vindo de Minas, onde atuou no rádio e no teatro. Aqui assumiu integralmente a identidade de bancário, fez carreira, ocupou cargos importantes, criou os filhos e, principalmente, fez amigos. Mas ninguém desconfiava que, por trás do jeito pacato, a cabeça fervilhava; e que, muito menos, Lara tinha tanta história para contar.

Mas ele nunca poderia imaginar que a vida de aposentado não é fácil, que o tal ócio criativo defendido por De Masi é muito bom na teoria, mas na prática tem seus entraves. E assim, as flores do jardim vão bem, estão viçosas, coloridas; mas os livros estão emperrados.

É tanta ocupação que ele não sabia que tinha, tanta obrigação que apareceu, que não sobra tempo para sentar e escrever sem que alguém lhe peça alguma coisa. Todos os aposentados do bar sabem muito bem como é a ladainha.

                – Por favor, pegue aquilo; vá ao supermercado; preciso que busque um remédio na farmácia; acompanhe o rapaz que veio lavar a caixa d’água, já viu a vela do filtro, tem que apertar o parafuso do armário, ainda não foi ao banco?

O primeiro livro foi muito bem; é um romance ficcional, uma história de redenção cheia de aventuras e percalços, que começa e termina na selva amazônica e que tem a rara qualidade de prender o leitor. Chama-se O Homem do 1303 – Uma luz que se apaga.

Lara tem mais dois romances iniciados, mas os afazeres da realidade não respeitam a ficção, mas ele vai aos poucos dando forma aos textos que escreve ao mesmo tempo. O sonho é passar uma temporada em Caldas Novas, onde espera deixar a vida dura de aposentado e voltar a escrever.

P.S. – Ele está ocupado, mas e-mail ele reponde: larasebadf@gmail.com

Publicado no Correio Braziliense, em 12 de janeiro de 2018