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“Se a rua Beale falasse”, de James Baldwin: tensão racial e olhar feminino

Publicado em filosofia, história, literatura, racismo, romance, violência

Beale Street fica em Memphis, no Tennessee, a mais de mil quilômetros de Nova York, mas é uma rua muito simbólica quando se trata de James Baldwin. O blues, pai do jazz e de todas as outras formas musicais de manifestação da cultura negra norte-americana teriam nascido na tal rua. Simbolicamente falando, para Baldwin, é como se todos os negros norte-americanos tivessem nascido na Beale Street. É tudo que o leitor precisa saber sobre essa rua ao ler Se a rua Beale falasse, romance adaptado para o cinema por Barry Jenkins e indicado ao Oscar de melhor atriz coadjuvante e roteiro adaptado.

 

Lançado pela Companhia das Letras, que desde o ano passado começou a colocar nas prateleiras a obra de Baldwin, o romance é o quinto do autor, um dos nomes mais importantes da literatura negra norte americana. Nele, Tish luta para provar a inocência do noivo, Fonny, preso depois de uma acusação falsa de estupro. O casal é negro e o crime acontece no Village, em Nova York, bairro de brancos boêmios para o qual Tish e Fonny planejam se mudar após o casamento.

Livro foi adaptado para o cinema por Barry Jenkins

O romance é de 1974. As tensões raciais de uma Nova York violenta para os negros, suscetíveis às vontades do branco empoderado, mesmo em um cenário pós-segregação, não são apenas um pano de fundo. Elas conduzem a trama. Fonny jamais seria detido se o policial que o prendeu não fosse racista. Racionalmente, não há provas para acusá-lo, mas, como bem se sabe, a razão nada tem a ver com a situação.

Narrada por Tish e sempre submetida à sua perspectiva, a história também mergulha no ambiente das famílias afro-americanas daquelas décadas. Nessa trama, as mulheres são as protagonistas. Sharon, mãe de Tish, e Ernestine, sua irmã, além da própria narradora, unem forças para libertar Fonny. Elas providenciam o advogado, as testemunhas, as visitas à prisão e a esperança que mantém o rapaz vivo em uma sequência desumana de fatos e violências. Essas mulheres têm pressa, assim como o filho de Fonny que cresce na barriga de Tish.

A musicalidade de linguagem de Baldwin merece uma nota. Eventualmente, a tradução de Jorio Dauster pode confundir o leitor, mas é preciso lembrar que há um ritmo e uma maneira própria de falar, uma tentativa de trazer para a literatura o ambiente sociofamiliar afro-americano da década de 1970. Isso é notório nos romances de Baldwin e pode se perder na tradução.

Por fim, há muito de James Baldwin em Se a rua Beale falasse. A relação de amor e ódio com Nova York (da qual o autor partiu para um longo exílio, no sul da França), o confronto constante das questões raciais, tão complicadas quanto absurdas naquelas décadas, as referências das lutas pelos direitos civis, Malcom X, de quem o autor era amigo, e Martin Luther King, mas também a música, Ray Charles, Marvin Gaye, B. B. King e um modo de vida que é quase uma etnografia de uma época e de um povo. É um livro curto, cheio de descrições tocantes (com uma atenção especial para o momento em que Tish descreve a sensação provocada pelo feto que carrega) e pungentes.

 

Se a rua Beale falasse

De James Baldwin. Tradução: Jorio Dauster. Companhia das Letras, 224 páginas. R$ 49,90