A África que não se registra

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Quando saí da antiga casa de Nelson Mandela, na periferia de Johannesburgo, fui surpreendida pelo abraço de um senhor negro, muito alto, que me ofertava seu sorriso xadrez pelo efeito dos dentes remendados com pedaços de ouro. Ele queria se certificar de que eu estava feliz ao cumprir meu objetivo: visitar o local onde morou o maior ícone político da África do Sul.

Minutos antes, ele tinha presenciado minha estupefação e minha reação enfurecida diante do grupo de brasileiros que, ao acaso, estavam no mesmo tour que me levava a Soweto, o bairro negro sobre o qual todos os guias de turismo brasileiros faziam a ressalva de que “não é seguro visitar sozinho”.

Aquelas pessoas que me acompanhavam atravessaram o oceano para chegarem à ponta do imenso continente africano; pagaram cerca de 40 dólares para visitarem aquele bairro; enfrentaram quase uma hora de trânsito para estarem diante da casa em que viveu Mandela antes de passar 27 anos preso, e, ao chegarem lá, se satisfizeram com poses diante da fachada da humilde residência.

Não, eles não queria entrar. Uns não queriam pagar os míseros cinco dólares do ingresso. Outros, estavam com pressa de chegar a outro ponto turístico, certamente para garantir nova foto, incrementarem o invejável álbum de viagem e compartilhar nas

redes sociais. Não disfarcei meu descontentamento. Eu iria entrar de qualquer forma e que me esperassem. Estava ali para isso.

Entrei. O quarto e sala que Mandela compartilhou com a primeira das três esposas e os três filhos está impecavelmente restaurado. Honras de todas as partes do mundo, dedicadas a Madiba, decoram aquelas paredes. Não posso dizer se foi naquela pequena cama exposta que ele realmente descansou seu corpo de 1,87m; menos ainda se definiu algumas táticas de sua luta contra o apartheid naquela mesa de madeira sem qualquer charme.

Não me importava. Queria conhecer o bairro que abriga mais de 1 milhão de negros de todas as classes sociais, separados pela quantidade de rands na conta bancária, mas igualmente unidos pelas feridas causadas pela segregação que, por anos, os tratou como párias em sua própria terra. Não conseguia assimilar como alguém poderia ser indiferente àquela realidade tão carregada de sofrimento e de discriminação.

Para aqueles meus companheiros brancos, privilegiados por poderem passar as férias na África, bastava um clique diante da placa que dizia que ali esteve Nelson Mandela. Precisavam apenas dos minutos suficientes para garantirem a melhor foto, sorridentes, naquele cenário, passado de tanta dor.

Para mim, era inadmissível o desinteresse daquelas pessoas. Se preciso fosse, ficaria ali, sozinha no bairro que meu país alertou ser perigoso. Mas esperaram e visitei aquele minúsculo local na gigantesca Johannesburgo.

Não fiz a foto diante da casa, mas sim lá dentro porque sou, igualmente, uma turista exibida. Ao fim da minha quase odisseia, ainda ganhei, no abraço daquele negro desconhecido, o que de melhor se pode receber em uma viagem: o acolhimento do seu anfitrião e a permissão de sentir a alma de seu povo. Essa emoção, eu garanto, ninguém será capaz de registrar nas fotos.

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