Pastel. pra que te quero?

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Pastel, pra que te quero?

A iguaria dá água na boca. Feita com massa de farinha de trigo, recheada com doce ou salgado e depois frita, tira qualquer um do sério. Nas feiras se formam filas pra comprar a delícia. Morder a quentinha crocante é puro prazer. Os paulistas aproveitam o hábito quatrocentão pra fazer piada lingüística. Dizem que o morador local se distingue do forasteiro porque pede “dois pastel e um chopes”.
Os barrigas-verdes sobressaem. Ao ver uma pastelaria, não se confundem com gaúchos, cariocas ou pernambucanos. Estejam onde estiverem, metem a mão no bolso, tiram o dinheiro e, olhos firmes no caixa, ordenam salivando: “Quero um envelope de boi ralado”.
Brasília não foge à regra. Na construção, atraiu gente das cinco regiões do Brasil. Todos, claro, loucos por pastel. Com a capital nasceu a Pastelaria Viçosa, que aliou a delícia frita ao caldo de cana. Pra quê? A Rodoviária, endereço da casa, tornou-se parada obrigatória de homens, mulheres e crianças. A moçada desviava o rumo para apreciar o banquete popular.
O tempo passou. O estabelecimento inaugurou filiais. A mais recente abrirá as portas hoje. A festa será homenagem ao aniversário de Brasília, com clima de anos 60 e convidados especiais. Ao escrever o convite, uma dúvida tomou conta da equipe. Ei-la: “Pastel e caldo de cana é a cara de Brasília” ou “Pastel e caldo de cana são a cara de Brasília”? Sem acordo, a turma fez o que deve ser feito. Trocou a estrutura da frase: “Pastel com caldo de cana é a cara de Brasília”. Acertou. Mas a dúvida permaneceu.
O permissivo ser

Concordância é um calo no pé. Os pormenores são tantos que dão nó nos miolos. Mas, lidos com atenção, descobre-se que o leão é manso. Os casos aão muitos; as regras, poucas. Com o tempo, ganha-se familiaridade. Com a familiaridade, a fera vira o gatinho lá de casa.
O verbo ser é caso à parte. Ele tem vantagem em relação aos demais. Pode concordar não só com o sujeito, mas também com o predicativo — o termo que indica o modo de ser do sujeito. A gente pode dizer: Na infância, tudo é alegrias. Na infância, tudo são alegrias. O mundo é ilusão. O mundo são ilusões. Pastel e caldo de cana é a cara de Brasília. Pastel e caldo de cana são a cara de Brasília.
Olho vivo

Não existem escolhas inocentes. A opção pelo singular ou plural dá um recado. Diz que a pessoa valoriza o termo eleito pra fazer a concordância. Ao dizer “pastel e caldo de cana é a cara de Brasília”, o destaque fica com cara de Brasília. Ao preferir “pastel e caldo de cana são a cara de Brasília”, o realce fica com pastel e caldo de cana.
Resumo da ópera: generosa, a língua dá opções. Mas cobra compromissos. A escolha por esta ou aquela estrutura mostra a cara e o coração do autor.
Inflexibilidade

Com o ser, quase sempre as duas construções estão corretas. Há só três casos em que ele é inflexível. Só abre uma porta:
1. Na indicação de horas o verbo só tem olhos para o número expresso: É uma hora. São três horas. É meio-dia e meia. Seriam umas três horas da tarde. Eram quase 11horas.
2. Nas expressões de quantidade, medida, peso, valor, tempo (é muito, é pouco, suficiente, é caro, é barato) é invariável: Um é pouco, dois é bom, três é demais. Dois mil reais é muito. Vinte quilos é suficiente. Dois minutos é muito tempo pra quem está com dor de dente. Vinte reais é menos do que o produto vale.
3. Na expressão expletiva “é que”, mantém-se invariável: Eu é que digo. Nós é que sabemos. As rosas é que são belas. Nós é que somos patriotas.
É isso. O verbo ser tem a cintura mais flexível do português. Ora acha o sujeito simpático. Vai pro lado dele. Ora o predicativo o atrai mais. Passa pra lá. Mas, volta e meia, se lembra do comentário da vovó: “Quem muito se abaixa mostra os fundilhos”. Ele, então, banca o machão. Bate pé e se impõe.
Friedrich Nietzsche ensina

“Esquecemos nosso erro quando o confessamos a alguém, mas, em geral, o outro não esquece.”
Quero saber

César Mesquita, de João Pessoa, pergunta: “Passarão a chuva e o vento? Passará a chuva e o vento? Eta rolo!”
César, observe dois pontos. Um: o sujeito é composto (chuva e vento). Dois: está anteposto ao verbo. No caso, você tem duas saídas. Uma: o verbo concorda com todos os sujeitos. A outra: o verbo concorda com o sujeito mais próximo: Passarão o céu e a terra (com os dois). Passará o céu e a terra (com céu, que fica mais perto do verbo). Viu? É acertar. Ou acertar.
Ser concreto é…
Seguir o exemplo de Franklin Roosevelt. Um assessor queria fazer bonito. Apresentou-lhe esta frase num discurso: “Esforçar-nos-emos para criar uma sociedade mais inclusiva”. O presidente americano leu-a em voz alta. Achou-a pretensiosa e oca. Substitui-a por “Vamos construir um país em que ninguém fique de fora”. Que tal?