Águas de novembro

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“São as águas de março fechando o verão”, canta Tom Jobim. As de novembro deveriam trazer a estação do calor, do bronzeado, dos biquínis charmosos. Mas este ano vieram com mau humor. Em Santa Catarina choveu três vezes mais que o normal. As imagens exibidas pela tevê assustam. Morros desmoronam. Barreiras caem. Estradas se fecham. Casas se afogam. Bairros se transformam em rios. Vidas se perdem. Nada menos que 45 mil pessoas perambulam sem teto.

Jornais, rádios e tevês só falam na tragédia. As notícias ruins trazem três verbos à tona. Um deles: ruir. Outro: chover. O último: assistir. O trio tem manhas. Algumas atingem a conjugação. Outras, a regência. Há as que batem à porta da grafia. Conhecê-las pega bem. Ao empregá-las como manda a norma culta, o repórter demonstra domínio da língua e, de quebra, dá a notícia correta. Em suma: homenageia o leitor e o ouvinte.  

O indesejado

Ninguém o ama. Ninguém o quer. Com razão. Ele faz estragos, destrói bens, mata gente. Além disso, dá trabalho na conjugação. Trata-se do verbo ruir. O dissílabo não tem todas as pessoas, tempos e modos. “Casas roem”? Nem pensar. Ruir só se flexiona nas formas em que ao u se seguir e ou i rui, ruem, ruiu, ruirá, ruiria. Em “casas roem” até o u desaparece. Xô!  

Chover & cia.

Chover joga no time de ventar, trovejar, nevar, amanhecer, anoitecer. Por indicarem fenômenos da natureza, eles só se conjugam na 3² pessoa do singular: Chove sem parar. Ventou muito ontem à noite. Amanhece cedo no verão. Sempre troveja quando chove?

A língua detesta monotonia. Por isso recorre ao sentido figurado. Aí chover & cia. entram na vala comum. Concordam com o sujeito em pessoa e número: Choveram aplausos depois da apresentação. Os moradores trovejaram impropérios contra os ladrões. Amanheci alegre. Os turistas anoiteceram na praia.  

Olha a ajuda

Nas tragédias climático-ambientais, falta tudo. Falta teto, falta agasalho, falta cobertor, falta colchão, falta luz, falta água, falta comida, falta remédio. Mas não falta solidariedade. Voluntários ajudam. Homens, mulheres e crianças dividem o que têm. ONGs recolhem doações. O governo, claro, faz a sua parte. Conjuga o verbo assistir. Flexiona-o na regência direta. Sem preposição, assistir significa prestar assistência: O governador assiste os flagelados com médicos, enfermeiros e alimentos. Professores assistem crianças com dificuldade de aprendizagem. Quem assiste os menores de rua?

No lugar de outro

A língua adora elegância. Por isso foge da repetição. Os pronomes prestam grande ajuda na tarefa estética. Um deles é o pronome átono o, a. Ele substitui o objeto direto. Transitivo direto, volta e meia assistir lança mão do recurso que torna o texto mais ágil e mais bonito. Observe a transformação:

Santa Catarina tem 45 mil desabrigados. O governo assiste os 45 mil desabrigados com remédios, comida e água potável.

A repetição de “45 mil desabrigados” torna o texto monótono. Pior: autoriza inferências negativas a respeito do autor. Das duas, uma. Uma: ele desconhece os recursos da língua. A outra: se os conhece e não os usa, é preguiçoso. Valha-nos, Deus. Vem, pequenino:

Santa Catarina tem 45 mil desabrigados. O governo os assiste com remédios, comida e água potável.  

Sem confusão

Em vestibular e concursos, não basta se sair bem. É importante sair-se melhor que os outros. Na guerra por milésimos, qualquer pontinho faz a diferença. O verbo assistir pode dar uma boa mãozinha. Ele tem uma cara e dois significados principais. Um: prestar assistência. O outro: presenciar. Na norma culta, a última acepção tem um capricho: não aceita o pronome lhe como objeto indireto. Dá a vez a a ele, a ela: Enchentes como as que castigam Santa Catarina são inéditas no estado. Assistimos a elas com pena, tristeza e preocupação.