Os avanços e o os desafios da legislação de defesa do consumidor

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Em 25 anos de vigência do Código de Defesa do Consumidor (CDC), empresas e clientes foram incorporando no cotidiano itens da lei de acordo com a situação vivida. A adaptação do que está escrito no papel para a realidade nem sempre seguiu o esperado pela comissão de juristas, deputados e entidades de proteção que pensaram o Código à época da elaboração. Vinte anos depois, alguns setores produtivos continuam problemáticos – principalmente os regulados, como telefonia, aviação civil e planos de saúde – e artigos e condutas “não pegaram” nas relações de consumo no Brasil. Especialistas ouvidos pelo Correio apontam o que eles acreditam que deu certo e o que não avançou.

Uma das principais críticas dos especialistas é o excesso de intermediação do Estado nos conflitos de consumo. A ideia inicial era a de que, com a tutela específica, empresas e clientes resolvessem os problemas entre si cientes de seus direitos e deveres. Mas não foi o que ocorreu – consumidores recorrem cada dia mais aos Procons e aos Juizados Especiais e algumas empresas preferem as multas administrativas e brigas judiciais à conciliação. O resultado é que, a cada 10 processos nos Juizados Especiais brasileiros, nove são relativos a conflitos de consumo.

“Quando empresas deixam seus problemas para o sistema público resolver, em vez de serem mais eficientes, geram um custo social muito grande. A conciliação pode levar anos, os juizados ficam abarrotados de demandas que não justificam o custo”, defende Geraldo Alckmin, governador do estado de São Paulo e autor do anteprojeto do CDC. Na opinião de José Geraldo Brito Filomeno, vice-presidente e relator dos trabalhos da comissão que elaborou o Código, a falta de conciliação entre as partes levou o Procon a exercer mais funções do que as propostas pela lei. “Uma questão que, ao meu sentir, é problemática, é o acúmulo de atribuições impostas aos Procons, que, de uma hora para outra, de órgãos de defesa, proteção, orientação, informação e mediação de conflitos, passou a exercer poderes de polícia administrativa”.

O extremo uso do Estado para resolver conflitos e a prioridade da resolução individual dos problemas fizeram com as cláusulas que privilegiassem questões coletivas fossem deixadas de lado, é o caso, por exemplo, convenção coletiva de consumo. Dessa forma, não é comum no Brasil que entidades civis de consumidor façam acordo com os fornecedores. Essa prática fica mais restrita aos Termos de Ajuste e Conduta assinados pelos Ministérios Públicos, que são órgãos ligados ao Estado. “O CDC era para ser mais coletivo, acabou sendo usado de uma forma mais individual. Não era para judicializar, era para despertar atitudes”, comenta Elici Bueno, coordenadora executiva do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

Na análise de Juliana Pereira, líder da Secretaria Nacional do Consumidor, do Ministério da Justiça, a convenção coletiva acabou não pegando por causa da cultura brasileira. “O Brasil tem pouca tradição de associativismo na área de defesa do consumidor. Diferentemente de países como os Estados Unidos, onde os consumidores se juntam, boicotam, fazem uma série de mobilizações”, afirma. 
Direitos a melhorar
O direito à informação antes da contratação de um serviço ou compra de um bem é um dos pilares do Código de Defesa e apontado pelas entidades civis como uma das grandes contribuições da legislação de proteção. Os contratos passaram a ser mais claros, assim como os rótulos de alimentos e embalagens de produtos foram obrigados a ser mais precisos. Porém, ainda há o que melhorar. Contratos de adesão, por exemplo, ainda apresentam cláusulas abusivas. Na rotulagem, a obrigatoriedade do símbolo “T” de transgênico nas embalagens é um tema que está sendo discutido no Congresso Nacional. “Ainda falta informação e os contratos poderiam ser melhor redigidos, mas, no passado, o cliente nem via o contrato, ou então, não sabia o preço do produto porque não estava na prateleira”, recorda Leonardo Bessa, procurador-geral de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT).

Os canais de atendimento entre cliente e empresa também melhoraram, mas não o suficiente para diminuir as queixas dos consumidores. Nem mesmo a regulamentação do tema com a criação da Lei do SAC (Serviço de Atendimento ao Consumidor) foi suficiente para melhorar essa relação. “Os canais de comunicação aumentaram, mas ainda falta qualidade na comunicação. Cancelamento de telefonia, por exemplo, não existe, é uma dificuldade”, argumenta Elici Bueno, do Idec.

A troca de produtos com defeito entrou na rotina das lojas, mas a operação nem sempre é fácil. A começar pela brecha que o CDC deixou em relação a produtos essenciais e não essenciais. O Código diz que a troca de produtos essenciais devem ser imediatas, porém, não há um recorte do que é entendido como essencial, deixando margem às diversas interpretações. Existe uma pressão das entidades de consumidores para que seja elaborada uma lista de produtos considerados essenciais. 

Além disso, o cliente fica sendo jogado entre o lojista e o fabricante e nem sempre cabe ao consumidor a opção do que fazer com o produto defeituoso. O servidor público Francisco Lisvone Sarmento Fontes, 43 anos, procurou o Procon do DF e a Justiça para tentar trocar um carro que já apresentou problemas duas vezes, mas a concessionária e a fabricante se negam a fazer a troca, mesmo com a determinação do CDC de que, não sanado o problema, cabe ao consumidor a escolha pela troca da mercadoria, devolução do dinheiro ou o conserto.

Francisco conta na primeira viagem que ele fez com o veículo de Brasília sentido Nordeste, o carro apresentou um problema mecânico e teve que ficar em João Pessoa (PB) 26 dias para ser reparado. Depois que recebeu o carro, novamente ele teve problemas mecânicos. Foi então, que Francisco solicitou a troca do veículo, mas a concessionária negou. “Pedi a substituição do veículo, não confio mais no carro. Mas a loja não aceita, não me responde e se nega ao diálogo, por isso, procurei o Procon e a Justiça”, afirma.
 
Bons exemplos
Entre as melhoras expressivas trazidas com o Código, algumas merecem atenção especial, segundo os especialistas. Uma delas é o recall, isto é, a convocação por parte de fabricante ou distribuidor para que determinado produto seja retirado do mercado ou reparado em caso de possíveis ou reais defeitos. “O número elevado de recalls no Brasil identifica que, em caso de risco, as empresas estão querendo agir preventivamente. Isso é uma grande conquista”, defende Bruno Miragem, presidente do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

A cobrança de dívida no Brasil também melhorou após o advento do CDC. “Com o Código se proibiu a lista pública de devedores, proibiu a cobrança vexatória e deu ao devedor a oportunidade de ser informado do débito”, defende Bessa, do MPDFT. O direito de arrependimento para compras feitas fora do estabelecimento comercial é um importante item do Código, ele acabou sendo essencial para regular as compras feitas na internet, afinal, quando o CDC foi promulgado, ainda não existia e-commerce. 
Para saber mais

Em março de 2013, a presidente Dilma Rousseff deu prazo de um mês para que o governo, em parceria com o setor privado, com 30 produtos considerados essenciais para a troca imediata. O prazo já expirou e não há previsão de divulgação dessa lista.

O QUE PEGOU E O QUE NÃO PEGOU: PONTO A PONTO

AVANÇOS:

1. Informação:

O dever de informar entrou no centro das negociações entre clientes e empresas. Antes, o fornecedor não tinha essa obrigação. Os rótulos e os contratos melhoraram o contéudo em 25 anos.

2. Recall:

A prevenção de danos ao consumidor tornou-se obrigatória. De 2002 até 2015, foram 892 campanhas de recall, 76% delas eram de veículos.

3. O sistema nacional de proteção:

Graças ao CDC, se instalou uma rede de Procons em todo o Brasil. Com o Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor (Sindec) é possível ter uma análise das relações de consumo em todo o Brasil. Antes, o comportamento dos fornecedores mudava de acordo com a região brasileira.

4. Cobrança de dívidas:

Passaram a ter regras como comunicação antecipada ao devedor e prazo de cinco anos para a execução.

5. Termos de Ajuste de Conduta (TAC):

Nos últimos dez anos, os acordos entre Ministério Público e as empresas se intensificaram, na tentativa de diminuir a judicialização e obrigando os lojistas a melhorarem as práticas.

6. Vendas à distância:

Quando o CDC foi feito, não existia comércio eletrônico, porém, o artigo do Código que fala de vendas à distância e dá 7 dias como direito de arrependimento foi bem incorporado pelo e-commerce.

O QUE PRECISA MELHORAR:

1. Vício do produto:

O Código diz que, em caso de problemas com o produto, tanto o fabricante quanto o lojista respondem solidariamente. Porém, o que ocorre é que o consumidor fica sendo jogado de um lado para o outro. O prazo de 30 dias também não é cumprido, assim como a escolha de como deve ser o reparo do produto estragado quase nunca é uma opção do consumidor.

2. Serviços públicos

Embora as prestadoras de serviços públicos devam cumprir as determinações do CDC, elas pouco avançaram na defesa do consumidor, como direito à informação, canais de atendimento com o cliente e clareza na contratação.

3. Convenção coletiva de consumo

O que se pretendeu com esse item no Código foi que, havendo consenso entre entidades de fornecedores e consumidores, poderia ser feito um acordo entre as partes. Porém, na prática, esse artigo não pegou.

4. Serviço de atendimento ao consumidor

Está previsto no Código e tem uma lei específica regulando o tema. Porém, o contato do consumidor com algumas empresas ainda é difícil. Às vezes, elas têm até o telemarketing, que é ineficiente e com pessoal pouco preparado.

4. Multas Procons:

O poder punitivo do Procon existe. Mas após as punições como multas, muitas empresas protelam na Justiça o pagamento e não resolvem o problema do consumidor.

5. Judicialização:

Muitas empresas deixam para resolver os conflitos de consumo na Justiça, ou então, preferem questionar as multas do Procon na Justiça.

6. Publicidade infantil

O Código fala que é proibida a publicidade que se aproveite da deficiência de julgamento e experiência das crianças. Porém, ainda não é claro o que pode e o que não pode na propaganda infantil. Há grupos que defendem a proibição completa.