Onde foi que nos separamos?

Publicado em Partidos, Política, Política

Tenho me perguntado: por que alguns amigos do antigo Partidão estão se tornando críticos implacáveis às minhas colunas no Correio Braziliense e outros, a maioria, concordam comigo? Onde foi que a vida separou nossos caminhos? Quais são as matrizes teóricas que influenciam nosso posicionamento? Não estou me referindo à militância partidária, porque as sucessivas crises de direção do PCB desde a anistia, o enfraquecimento da direção principal com os sequestros e assassinatos de importantes quadros e, por fim, o colapso da União Soviética e a mudança de sigla e símbolo com a fundação do PPS explicam a diáspora comunista. Estou me referindo à orientação política geral que herdamos  da Declaracão de Março de 1958 e que foi consolidada no 6o. Congresso do PCB, em 1967, com a política de frente única, a defesa da redemocratização do país e a autocrítica dos erros cometidos antes do golpe de 1964, lições que formaram a minha geração de militantes do partido, após o grande racha liderado por Carlos Marighella.
Penso que há duas linhas de força que orientam o posicionamento dos meus críticos:

Primeiro, uma concepção de mundo que denomino de brejneviana, porque fortemente influenciada pelo pensamento do PCUS nas décadas de 1960 e 1970, no qual o teórico comunista que dava as cartas era Mikhail Suslov. O esquema de análise da situação política mundial se baseava na ideia de que o eixo da revolução mundial era a defesa da União Soviética e dos seus satélites na Europa Oriental, em torno dos quais deveriam se unir os movimentos de libertação nacional e o movimento operário e sindical. A guerra-fria era a baliza para atuação dos comunistas, dentro de uma concepção de luta de classes na qual o antiimperialismo era a chave da revolução mundial. Desse ponto de vista, o equilíbrio estratégico militar entre a União Soviética e os Estados Unidos era a premissa das mudanças em cada país da periferia (China, Cuba, Vietnã, Irã, colônias portuguesas, ditaduras de um modo geral), mas nunca na Europa Ocidental (Grécia, Itália e Portugal).

Segundo, uma visão nacional-desenvolvimentista de caráter fortemente positivista, na qual a luta em defesa dos interesses nacionais estava acima da defesa da democracia, vista como um instrumento para a combinação do trabalho legal contra a ditadura, a defesa dos direitos humanos e das liberdades democráticas, e o trabalho ilegal, a organização do partido, e não como um valor universal. A inversão do par dialético, para subordinar o nacional ao democrático, somente veio a ocorrer em 1983, após o 7o. Congresso do PCB, assim mesmo com uma visão muito economicista. Nela, , o papel do Estado passou a ser absolutizado em relação às tarefas de caráter econômico e social, no melhor estilo bolchevique. É quando a ideia de que o capitalismo de Estado seria a chave para a revolução brasileira ganhou força. Essa visão, protagonizada por soviéticos, alemães orientais e franceses, passou a influenciar direta ou indiretamente outros setores da esquerda brasileira. Segundo Afanasyev, que oficializou a doutrina no PCUS, o capitalismo monopolista de Estado é a “fusão do Estado burguês com o poder dos monopólios”. Ora, se o capitalismo de Estado é a antessala do socialismo, como dizia Lênin, basta tomar o poder e preservá-lo para criar as condições objetivas para a revolução socialista.

Além disso, as ideias de que a luta de classes é o motor da História, ou seja, a parteira das mudanças, e de que o partido operário  é a parte consciente do proletariado e a vanguarda da revolução social completam o esquema de análise. Por isso, diante da crise atual, não importa que o transformismo petista e o voluntarismo decorrente das ideias acima tenham desaguado na crise que estamos vivendo. O fundamental é a esquerda no poder permanecer encastelada no estado brasileiro, custe o que custar.
Ideias errôneas e ultrapassadas, em algum momento, já fizeram algum sentido, porque idealizam soluções para os problemas. No nosso caso, as que foram consideradas acima, foram ultrapassadas pelas mudanças ocorridas no mundo e no Brasil, como o fim da União Soviética e da guerra fria, a globalização, a substituição da grande indústria mecanizada (paradigma bolchevique para organizaçao do Estado, da economia e do partido) pelo toyotismo e sistemas de produção flexíveis, a democratização do nosso país e o desenvolvimento do capitalismo no campo. Por que elas continuam influenciando meus críticos? Ora, porque são parte de uma ideologia e, por isso mesmo, uma forma distorcida de compreensão da realidade. Marx e Engels, como nos mostra a Ideologia Alemã, nesse aspecto, não faziam distinção entre ideologia burguesa e ideologia proletária. Essa é uma invenção de Lênin e outros revolucionários após a morte de Marx,  consolidada depois do racha da II Internacional Socialista. A grande obsessão de Marx era apreensão da realidade para transformá-la e não a sua representação como solução dos problemas. Nesse aspecto, o próprio marxismo tornou-se uma ideologia prisioneira de seus próprios dogmas. É o que também está acontecendo com os setores da esquerda que não conseguem enxergar a lambança que fizeram ou apenas apoiam.

Dica de filme para o fim de semana: Adeus, Lênin!

https://www.youtube.com/watch?v=KtLmXKv4AIY