Nas entrelinhas: No banco dos réus

Publicado em Congresso, Economia, Governo, Justiça, Lava-Jato, Partidos, Política

O acordo da Odebrecht representou uma clara opção do Ministério Público no sentido de priorizar a punição dos políticos, em troca da salvação da empresa. No caso da JBS, essa escolha foi radicalizada

Na véspera do início do julgamento das contas de campanha da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer, que começa hoje no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e pode resultar até na cassação do presidente da República, o Ministério Público Federal no Distrito Federal assinou o polêmico acordo de leniência com o grupo J&F, controlador da JBS, no âmbito de quatro operações da Polícia Federal: Greenfield, Sepsis e Cui Bono (desdobramentos da Lava-Jato) e Carne Fraca. O acordo ainda depende de homologação da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público e do juiz da 10ª Vara da Justiça Federal, Vallisney de Souza Oliveira, em Brasília.

A J&F pagará R$ 10,3 bilhões a título de multa e ressarcimento mínimo, dos quais R$ 8 bilhões serão destinados a entidades e órgãos lesados com os atos criminosos praticados pelas empresas ligadas à J&F; e R$ 2,3 bilhões ao financiamento de projetos sociais indicados pelo MPF. O prazo para o pagamento da multa é de 25 anos e o valor de cada parcela será corrigido pelo Índice de Preço ao Consumidor amplo (IPCA). A previsão, segundo o MP, é que o valor pago supere R$ 20 bilhões. Com 37 cláusulas, o acordo de leniência estabelece 23 obrigações ao grupo, como a remoção de Joesley Batista de todos os cargos diretivos e de conselho das companhias e sua não recondução pelo prazo de cinco anos. É a contrapartida da entrega da lista consolidada e discriminada das doações eleitorais realizadas nos últimos 16 anos, com o nome de quem autorizou o pagamento e o valor repassado, discriminando os beneficiários de propina que possuem prerrogativa de foro.

O acordo de delação premiada da Odebrecht representou uma clara opção do Ministério Público no sentido de priorizar a punição dos políticos, em troca da salvação da empresa. Marcelo Odebrecht, porém, continua preso. No caso da JBS, essa escolha foi radicalizada, pois Joesley Batista, que gravou o presidente Michel Temer e protagonizou as “ações controladas” da Polícia Federal que flagraram o ex-deputado Rodrigo Rocha Loures, preso no sábado passado, nem sequer foi detido. Em contrapartida, de cada três integrantes do Congresso, um foi delatado. Joesley entregou uma planilha com os nomes de 167 deputados federais e 28 senadores, de 19 partidos, que supostamente teriam recebido propina nas eleições de 2014.

Juntos, quase 200 congressistas receberam mais de R$ 107 milhões da empresa. De acordo com os delatores, a maior parte dos recursos era propina, mesmo em casos de doação oficial registrada no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Os valores chegariam a R$ 500 milhões, beneficiando 1.829 políticos, cujos nomes a empresa se compromete a fornecer no acordo de leniência assinado ontem. O acordo rompeu o frágil e tenso equilíbrio que ainda havia nas relações entre o Congresso e o Ministério Público, arrastando para o epicentro da crise ética o Supremo Tribunal Federal (STF) e, no mesmo movimento, o Tribunal Superior Eleitoral, que nesta semana decidirá o futuro próximo da República.

Duas éticas
As relações entre os políticos e a alta burocracia, em circunstâncias normais, são naturalmente tensas. É natural o choque permanente entre políticos e servidores públicos em relação às políticas públicas, o que dirá quanto à gestão dos recursos do Tesouro. É que a ética dos políticos é a das convicções, ou seja, eles se movem pelos seus objetivos, mesmo quando miram o bem comum; a burocracia é depositária da ética da responsabilidade, sua missão é zelar pela legitimidade dos meios empregados na ação política, o que nem sempre acontece, haja vista os servidores envolvidos em grandes falcatruas. O que a Operação Lava-Jato desnudou, porém, foi outra coisa: a absoluta falta de ética dos envolvidos.

A existência de mecanismos permanentes e fraudulentos de transferência de renda do Estado para o setor privado é uma forma de acumulação primitiva, podemos resumir, assim funcionava o “capitalismo de laços” no Brasil. A “campeã nacional” JBS é uma síntese disso, assim como a Odebrecht. O patrimonialismo mais desenfreado, ou seja, o enriquecimento ilícito de agentes públicos, sejam políticos, sejam servidores, com base em desvio de recursos do Tesouro, é um subproduto desses mecanismos, que são muito favorecidos no “capitalismo de Estado”, no qual se fundem os centros de decisão do governo e das grandes empresas monopolistas. O resultado é isso que estamos vendo. Acontece que esse modelo de desenvolvimento capitalista no Brasil se esgotou, assim como se exauriu o processo de substituição de importações nos anos 1980.

Mas voltemos ao julgamento da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer. A investigação mostrou um sistema de financiamento de campanha apodrecido, que se alimentava desse modelo, para manter um “sistema de poder” que perdeu a funcionalidade, principalmente depois da crise mundial e da grande recessão na qual o país foi lançado durante o governo Dilma. O mais dramático no julgamento é que a oposição que questionou o abuso de poder econômico na campanha eleitoral recorreu aos mesmos métodos. A delação premiada da JBS, formalmente, não tem nada a ver com o processo que está sendo julgado, embora a empresa tenha sido a maior financiadora de campanha do pleito de 2014. A rigor, o nosso modelo político está no banco dos réus.