Nas entrelinhas: Depois do julgamento

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Alguém já disse que os extremos se encontram. O problema é quando eles se juntam para desestabilizar o processo democrático. A história está cheia de exemplos dessa ordem

Nunca o Supremo Tribunal Federal (STF) motivou tantas manifestações populares e atos de protesto; normalmente, os alvos das mobilizações são o Congresso, em votações importantes, e o Executivo, em razão de medidas impopulares. É o julgamento de um polêmico pedido de habeas corpus preventivo, interrompido ao meio numa manobra prosaica — dois ministros alegaram que não poderiam perder o avião —, que provoca a radicalização do cenário político nacional, com manifestações em todo o país. Estão até sendo tomadas medidas para impedir o acesso de manifestantes à Praça dos Três Poderes.

O STF abriu exceção ao julgar o pedido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado a 12 anos e 1 mês de prisão pelo Tribunal Regional Federal das 4ª Região (TRF-4), com execução imediata da pena. É uma situação inédita na República, cuja tradição de não julgar integrantes da elite política em exercício de mandato, protelando os julgamentos até prescreverem, é secular. Esse histórico de impunidade começou a ser contrariado no julgamento do Mensalão. E estava sendo erradicado pela Operação Lava-Jato.

Ocorre que a delação premiada dos executivos da Odebrecht teve os efeitos da “Teoria do Caos”: uma pequena mudança no início de um evento qualquer pode trazer consequências enormes e absolutamente desconhecidas no futuro. A amplitude da delação levou à formação de uma ampla coalizão de lideres políticos do governo e da oposição que operam nos bastidores, diretamente ou através de seus advogados, para interromper “a sangria” da Lava-Jato. A expressão é do líder do governo, Romero Jucá, em conversa gravada pelo ex-senador Sérgio Machado, que também fez delação premiada, e está causando a maior celeuma por que foi citada por certo personagem da série O mecanismo, de José Padilha, sucesso do canal de cinema a cabo Netflix. Lula meteu a carapuça e os petistas resolveram boicotar a série.

Mas voltemos ao tema do título. Não importa o poder de mobilização de um lado ou outro hoje e amanhã, o que interessa é o julgamento do habeas corpus, que colide com decisão anterior do Tribunal Superior de Justiça e a própria jurisprudência do Supremo, favorável à execução da pena após julgamento em segunda instância. Lula dispõe de um salvo-conduto que impede sua prisão, porque o julgamento foi interrompido.

Há três possibilidades. A primeira é um ministro pedir vista, o julgamento ser interrompido novamente, e Lula continuar solto, fazendo caravanas pelo país para protestar contra as decisões judiciais e forçar a barra para ser candidato a presidente da República. É quase uma chicana, mas é do jogo regimental. Lula está inelegível por causa da Lei da Ficha Limpa, uma emenda constitucional que não pode ser alterada pelo Supremo. Entretanto, a jurisprudência pode.

Segunda possibilidade: vamos supor que o habeas corpus seja negado. Acredita-se que essa decisão depende da ministra Rosa Weber, que discorda da jurisprudência mas tem tomado decisões respeitando o entendimento consagrado na Corte, até agora, quanto à execução da perna em segunda instância. Lula iria para a cadeia, o PT faria um grande esperneio, mas teria que arranjar outro candidato a presidente da República. Jair Bolsonaro (PSL-RJ) assumiria a liderança da disputa eleitoral, mas sem a polarização anterior, o que possibilita o surgimento de uma candidatura ao centro.

O terceiro cenário é a concessão do habeas corpus, o que implicaria na revisão da jurisprudência. O passo seguinte de Lula seria tentar o registro de sua candidatura em caráter provisório, enquanto aguarda a revisão da condenação criminal pelos tribunais superiores, ou seja, uma candidatura sub judice. Nesse caso, dificilmente surgirá uma alternativa ao centro, a polarização Lula versus Bolsonaro se consolidará.

Poder moderador

Alguém já disse que os extremos se encontram. O problema é quando eles se juntam para desestabilizar o processo democrático. A história está cheia de exemplos dessa ordem, na Europa e na América Latina. Aqui no Brasil já passamos por momentos dessa natureza. O STF foi inexoravelmente arrastado para o olho do furacão da crise ética. Bem ou mal, os políticos deram uma resposta à crise do governo Dilma Rousseff, que perdeu o controle da economia e sustentação do Congresso. Mesmo no caso das denúncias contra o presidente Michel Temer, que foram rejeitadas pela Câmara, a solução política não desestabilizou as instituições do país.

Agora, a situação é mais grave. Dependendo da decisão que tomar, o Supremo agravará o cenário de radicalização política. Há todo um debate sobre o princípio da presunção da inocência e o transitado em julgado, mas a verdade é que o julgamento em curso é casuístico demais. A Corte até aqui atuou como poder moderador e moralizador na crise. Agora, corre o risco de perder essa condição.